“Aqui é uma luta do bem contra o mal. Da luz contra a escuridão. Do certo contra o errado", anuncia a página do “O Cristão e a Política”, um dos cursos online oferecidos pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), disponível pelo valor de R$ 197.
A mesma tática de exibição de fotos e vídeos também foi incentivada no curso online “Ação Conservadora”, vendido pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), onde ele promete uma “formação essencial em política”. Pelo valor de R$ 297, o aluno tem acesso a 22 aulas de diversos temas conduzidas pelo deputado na companhia de convidados especiais.
Figuras como Ana Campagnolo, deputada estadual de Santa Catarina; Damares Alves, senadora eleita pelo Distrito Federal; e o próprio Nikolas são alguns dos nomes chamados para estar ao lado de Eduardo no curso.
Foco nas eleições, por dentro da extrema direita
Tanto o curso “Ação Conservadora” quanto o “Cristão e a Política” foram lançados em 2022 na plataforma Eduzz, empresa especializada na hospedagem de cursos variados. Até hoje, os produtos são divulgados nas redes sociais dos parlamentares e oferecem quase um treinamento na formação de novos políticos – e novos candidatos, já que estamos em ano eleitoral.
Nikolas Ferreira, inclusive, lançou um segundo curso chamado “Caixa Preta”, onde promete revelar dicas e segredos para vencer as eleições municipais de 2024. Os cursos não oferecem nada muito diferente do que os parlamentares já entregam no dia a dia da atividade política deles. Mas os discursos são efetivos para criar um senso de comunidade e atrair novos assinantes com uma linha bastante parecida com a de coach motivacional.
Nesta reportagem, AzMina assistiu e analisou os dois cursos online oferecidos por Nikolas Ferreira e Eduardo Bolsonaro, se atentando especialmente ao que eles falam sobre aborto e as táticas de desinformação de gênero propagadas para inúmeros assinantes.
O foco em questões de gênero, com direcionamento antifeminista, mostra que a mobilização conservadora em torno do aborto é constante e persistente. Os materiais oferecidos no conteúdo programático de Eduardo e Nikolas exibem argumentos fundados na religião e na misoginia.
São cursos para formar opiniões radicais, onde não há espaço para contradizer informações, gerando potenciais políticos e ativistas antidireitos humanos, apoiados em narrativas falsas ou manipuladas. Ainda que poucos políticos da direita apostem nesse formato, é um importante recurso para a disseminação de desinformação, especialmente sobre os direitos das mulheres.
Dificultar a decisão de quem procura atendimento
“Sabe qual é a melhor coisa para a mulher não abortar? É mostrar o procedimento. (…) O feto tenta lutar pela vida", aconselha Eduardo Bolsonaro durante a aula “Ideologia de Gênero e Aborto”. Nela, ele divide a mesa com a colega Chris Tonietto (PL-RJ), uma das principais vozes contra os direitos sexuais e reprodutivos na Câmara dos Deputados.
Durante pouco mais de uma hora, a deputada demonstra táticas comuns para dificultar a decisão de quem precisa interromper uma gravidez indesejada. Ela se concentra em pregar contra o aborto legal em casos de estupro. Para isso, Chris menciona o relato de uma mulher não identificada que teria sofrido violência sexual e optado por não interromper a gestação.
A parlamentar também cita nominalmente médicos que fazem o aborto pelo Sistema Único de Saúde (SUS), entre eles Olímpio Barbosa de Moraes Filho. O ginecologista e obstetra pernambucano atendeu a menina de 10 anos estuprada pelo tio que tinha direito ao procedimento.
Os movimentos feministas e a esquerda são tachados de assassinos cruéis responsáveis pela morte de bebês. “O feminismo tem sede de sangue e espalha uma mentalidade contraceptiva para colocar a mulher como algoz do seu próprio bebê“, afirma Chris Tonietto na aula gravada.
Em busca do eleitorado não religioso
Mesmo sendo representante forte da igreja católica na política, Chris Tonietto evita tocar em argumentos explicitamente religiosos, inclusive na aula do “Ação Conservadora”. Para Tabata Tesser, doutoranda em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), essa é uma estratégia política para convencer pessoas que não concordariam se fossem usados termos religiosos. “Eles não precisam de uma gramática religiosa para utilizar argumentos religiosos.”
Chris Tonietto criou a Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto em Defesa da Vida, em 2019, unindo senadores e deputados federais da direita. A deputada já organizou homenagens na Câmara a movimentos “pró-vida” no auge da ofensiva contra os direitos sexuais reprodutivos. Ela também destinou R$ 200 mil em emendas parlamentares para organizações antiaborto.
Nos minutos finais da aula, os parlamentares citaram o caso da criança de 11 anos estuprada pelo tio que teve o aborto negado pela Justiça de Santa Catarina. “Se criança não é mãe, porque ela está fazendo sexo?“, questionou Eduardo Bolsonaro, desconsiderando que, pelo Código Penal brasileiro, qualquer ato sexual com menores de 14 anos se trata de estupro de vulnerável.
A reportagem ouviu essa fala de Eduardo no começo de junho, quando teve o primeiro acesso ao curso. Nessa época, o projeto de lei 1904 – o PL do estupro (que criminaliza mulheres que interromperam a gestação após 22 semanas por homicídio) ainda não tinha se espalhado pelas redes sociais. Depois, percebemos que a fala foi retirada da gravação.
Discurso para culpabilizar e criminalizar as mulheres
No caso de Nikolas Ferreira, não há qualquer tentativa de disfarçar o discurso religioso e antigênero – nem a desinformação. Em uma das aulas, o deputado diz que existe um “limite de tempo“, até nos casos legais, para interromper a gravidez – o que é mentira.
Ainda que haja resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) ou normas criadas por hospitais e equipes médicas, não há nenhuma determinação legal sobre até quando o procedimento pode ser feito nos casos permitidos por lei. Conforme o Código Penal, o Estado brasileiro deve garantir o aborto legal e seguro para qualquer mulher, independentemente da idade gestacional, que foi vítima de estupro (resultando na gravidez), corra risco de morte ou esteja gestando um feto anencéfalo.
O discurso de Nikolas reforça a culpabilização e criminalização – sempre buscando silenciar e neutralizar as vozes das mulheres com argumentos e narrativas falsas. Segundo o parlamentar, o aborto é uma consequência da “libertinagem sexual” e a destruição da verdadeira identidade progenitora das mulheres. Para ele, “a casta majoritária são mulheres que fizeram sexo de forma desregrada, geraram um filho e não querem arcar com as consequências dos seus atos.“
O deputado desconsidera a realidade, em que, conforme a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, 1 em cada 7 mulheres com idade próxima dos 40 anos já fez um aborto no Brasil. E o perfil da mulher que aborta no Brasil já é mãe, é negra e religiosa. Entre as que procuram os serviços de aborto legal, também estão crianças vítimas de abusos sexuais, sendo que muitas delas descobrem a gravidez tardiamente.
Infelizmente, “há uma circulação muito forte (sobretudo nos cursos antifeministas) da ideia de que a agenda feminista se resume à legalização do aborto e na desqualificação do masculino, tendo a superioridade feminina como fundamental”, explica Jacqueline Moraes Teixeira, antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UNB).
‘A mulher está provando do próprio veneno’
Diversas vezes, Nikolas Ferreira referiu-se à gravidez como um castigo pelos atos da mulher. E a morte dela em um procedimento de aborto seria mais uma punição. “Quando a mãe morre fazendo aborto, ela simplesmente está tomando do veneno que ela própria está querendo para a vida do filho dela“, afirma ele, contradizendo uma fala comum da extrema-direita contra o aborto, de que toda vida importa.
Em dado momento da aula, o parlamentar tenta brevemente argumentar contra o procedimento usando a ciência, mas não aprofunda em dados ou fontes. “O bebê de fato é uma pessoa independente, ele controla as fases gestacionais. Ele é um agente ativo na gestação e não um prolongamento do corpo da mulher.“
A médica Helena Paro é categórica em afirmar que o comentário do deputado não tem nenhum lastro na ciência. Ela é ginecologista e obstetra, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), responsável pelo primeiro serviço de aborto legal por telemedicina do Brasil.
“O feto, o embrião do ser humano em potencial, faz parte da espécie humana, mas não é uma pessoa e muito menos um agente ativo da gravidez”, aponta Helena, explicando que se a mulher morrer, o feto não sobrevive, mesmo completamente desenvolvido, por isso ele não é um agente ativo. “Isso é uma tática enganosa, falaciosa, maldosa de querer transformar pessoas com capacidade de gestar em simplesmente úteros.”
Doutrinação online e revisionismo histórico
Com seus cursos, Nikolas Ferreira também divulga a própria atividade parlamentar, capta eleitores e ainda tenta produzir uma espécie de trabalho de base para formação política das próximas gerações.
A pesquisadora em gênero Sonia Corrêa lembra que esse método de ensino foi bastante difundido a partir dos cursos virtuais oferecidos por Olavo de Carvalho, e adotado por outras figuras conservadoras como o Padre Paulo Ricardo – um dos representantes da ala mais tradicional e reacionária da igreja Católica.
Há um trabalho “formativo”, e os cursos ainda são uma ferramenta importante para criar um senso de comunidade no eleitorado. “Todo curso tem uma comunidade, ou um grupo de WhatsApp, ou Telegram, onde os membros se reúnem”, avalia Tabata Tesser, doutoranda em Sociologia. “É uma formação antidireitos, oferecendo uma oportunidade de sociabilidade, conectando as pessoas em torno desses conceitos.”
Conteúdos como os de Eduardo e Nikolas são poderosas ferramentas para disseminar os conceitos e valores deles de maneira acessível e simples para o público geral. No relatório “Curso Formação Conservadora: como pensa a extrema direita brasileira?”, as jornalistas Andrea Dip e Niklas Franzen alertam para a pretensão ambiciosa de Eduardo Bolsonaro, por meio do seu curso, de promover um revisionismo da história brasileira sob a ótica ideológica da extrema direita.
Promovendo os cursos nas redes para os eleitores
Por meio da empresa privada Destra Cursos Ltda., na qual Nikolas Ferreira e o seu assessor de gabinete, Phablo Gomes Almeida, são sócios, o curso “O Cristão e a Política” investiu em mais de 200 anúncios pagos no Instagram e Facebook (plataformas da Meta). As mensagens promovidas usavam o debate sobre a descriminalização do aborto como isca. Só em julho de 2024, foram gastos entre R$ 25 mil e R$ 30 mil em anúncios sobre o curso, que atingiram mais de um milhão de usuários, de acordo com a Biblioteca de Anúncios da Meta.
A reportagem apurou que não há impeditivo na entrada de Nikolas e Phablo como sócios da Destra, exceto se assumirem cargos de sócio-administrador ou fecharem contratos com a Administração Pública.
Longe de ser uma “cortina de fumaça” (para esconder outros problemas e interesses), o aborto é um dos temas mais explorados pela extrema direita nas redes sociais e no cotidiano parlamentar. Os deputados antidireitos apontam o movimento feminista como algoz da sociedade e buscam fisgar o eleitorado pelo lado emocional e religioso. Há um interesse de se promover politicamente.
“Não há interesse em um debate de ideias, é simplesmente tratado como uma grande guerra moral”, explica Nicole Sanchotene, uma das pesquisadoras responsáveis pelo relatório ‘Temos Que Dar um Basta’: Campanha Multiplataforma em 2023 contra a ADPF 442 e o Direito ao Aborto no Brasil, do Laboratório de Pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (NetLab).
Os pesquisadores observaram que Nikolas Ferreira está entre os personagens que aparecem nas redes sociais como “defensores da moralidade” e “contra as pautas de esquerda” de uma forma geral, sobretudo contra o aborto. O relatório destaca um vídeo muito compartilhado, em que Nikolas reproduz o som dos batimentos cardíacos do próprio filho.
Investimento na propaganda antiaborto
Anúncios e publicações com apelo emotivo, ignorando pesquisas oficiais sobre o aborto no Brasil e no mundo, também dominam o cenário das redes sociais. No geral, não se discute com base em evidências científicas. Enquanto os antiaborto alcançam milhares de seguidores, dificilmente, uma figura pública conseguiria o mesmo impacto falando sobre a realidade dos direitos sexuais e reprodutivos.
Semanas antes da mobilização da sociedade contra o PL 1904/2024, em junho passado, políticos e conservadores já dominavam a conversa sobre o tema nas plataformas da Meta. Eles começaram a postar mais a partir da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) para proibir abortos acima de 22 semanas, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano.
Nesse período, a deputada federal Julia Zanatta (PL) e o senador Eduardo Girão (Novo) pagaram por anúncios sobre o tema nas plataformas da Meta, mostrando imagens de recém-nascidos e fetos de plástico. No caso de Girão, foram gastos entre R$ 2,5 mil e R$ 3 mil em anúncios que impactaram mais de 1 milhão de usuários – grande parte mulheres de 25 a 34 anos. Os dados são da Biblioteca de Anúncios da Meta.
Ainda em 2023, entre agosto e novembro, período de debates sobre a ADPF 442, ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação no Brasil, outros deputados estaduais já se destacavam no ranking dos anúncios pagos nas redes sociais. O relatório Temos Que Dar um Basta, do Netlab, expôs que fora a produtora Brasil Paralelo, os cinco maiores anunciantes da Meta são lideranças políticas locais filiadas aos partidos PP e PL.
Nos conteúdos promovidos, deputados e vereadores mostram suas ações políticas abordando esse tema como estratégia de “prestação de contas” ao eleitorado conservador, exibem trechos de discursos em audiências públicas.
A antropóloga Jacqueline, da UNB, acredita que o fato de terem duas figuras importantes [Nikolas Ferreira e Eduardo Bolsonaro] oferecendo cursos com esses conteúdos (antiaborto e antifeminismo) traz um capital político para a circulação desses assuntos nas eleições municipais deste ano. “Consequentemente, isso se reverterá em um capital para que os dois também disputem posições melhores nas eleições federais de 2026.”
*Esta reportagem foi realizada com apoio do Consorcio para Apoyar al Periodismo Independiente en la Región (CAPIR) e Institute for War and Peace Reporting (IWPR).
**Os Direitos Sexuais e Reprodutivos na Revista AzMina são uma pauta transversal. Essa matéria faz parte de uma série de reportagens especiais sobre o Lobby Antiaborto no Brasil.
***Marie Declercq é colaboradora d’AzMina e não faz parte da equipe fixa da organização. Esta reportagem foi editada por Joana Suarez, com revisão de Bárbara Libório e Ana Carolina, todas da equipe AzMina. As artes foram feitas por Kath Xapi Puri.
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