Cultura machista, sistema de castas e impunidade contribuem para cenário de banalização de crimesA polícia da Índia confirmou nesta terça-feira (05/02) que prendeu todos os oito suspeitos de envolvimento no estupro coletivo da turista brasileira Fernanda Santos. A vlogger, de 28 anos, e seu marido, de 64 anos, têm viajado pelo mundo em suas motocicletas há vários anos. Eles foram atacados quando acampava à noite.
O ataque ocorreu na última sexta-feira, dia 1º de março, a cerca de 300 quilômetros da capital do estado, Ranchi, onde o casal estava passando a noite em uma barraca de acampamento, segundo a polícia. Eles haviam decidido acampar na cidade, pois não encontraram hotéis para pernoitar.
"Eles me estupraram, se revezaram enquanto alguns assistiam e fizeram isso por cerca de duas horas", disse a mulher, que também tem nacionalidade espanhola, ao canal de TV espanhol Antena 3.
O casal havia viajado para várias partes da Ásia em suas motocicletas antes de chegar à Índia há alguns meses.
Em outro incidente, apenas alguns dias após o ataque à brasileira, a polícia disse que uma artista de palco de 21 anos de idade, do estado central indiano de Chhattisgarh, foi supostamente estuprada por seus colegas artistas no distrito de Palamu, em Jharkhand.
Esses crimes vêm na esteira de outro incidente ocorrido no fim de semana, quando uma menina de 17 anos foi supostamente estuprada por dois homens quando voltava para casa depois de participar de um casamento no distrito de Hathras, no norte de Uttar Pradesh.
A natureza brutal desses ataques chocou a sociedade indiana e, mais uma vez, colocou no centro das atenções a questão da segurança das mulheres. Estupros brutaistêm sido relatados na Índia quase que diariamente, e os relatos de agressões sexuais aumentaram nos últimos anos.
Estatísticas não refletem a realidade
Uma média de quase 90 estupros por dia foi relatada na Índia em 2022, de acordo com dados do governo indiano. Mas é provável que o número real seja muito maior, pois muitos desses crimes não são denunciados devido ao medo de represálias, aos estigmas em relação às vítimas e à falta de confiança nas investigações policiais.
"Estamos vendo agora a pior fase da violência sexual e da misoginia", disse à DW Kavita Srivastava, secretária geral da ONG de defesa dos direitos humanos Peoples Union of Civil Liberties (PUCL, União Popular pelas Liberdades Civis).
"Esta é a nova Índia, onde parece haver um colapso completo do Estado de direito, que está afetando diretamente as mulheres, já que é também um período de consolidação despudorada do patriarcado."
Srivastava, que fez campanha pela segurança das mulheres, diz que a violência contra as mulheres parece ter se tornado ainda mais normalizada. "Por exemplo, os trolls nas mídias sociais, que querem silenciar, abusar ou estuprar toda mulher assertiva ou sua filha, não são responsabilizados", disse. "Com a crescente impunidade dos violadores e os instrumentos judiciais também se rendendo aos senhores políticos, o combate ao estupro se tornou difícil."
Jaya Velankar, diretora da Jagori, ONG especializada em questões femininas, vê o aumento dos crimes sexuais contra as mulheres no país, assim como o tratamento dado às que estão nos degraus mais baixos do rígido sistema de castas do país, como resultado da cultura de impunidade de cima para baixo, que atua como um fator encorajador. "Isso é uma reação contra as mulheres que ocupam mais espaços públicos e desafiam a hegemonia masculina em quase todas as esferas da vida", disse Velankar à DW.
"A maioria dos homens está sobrecarregada e não sabe como lidar com seus egos feridos, e o desemprego generalizado criou uma desesperança geral", acrescentou.
Velankar também se referiu aos baixos níveis de condenações, com casos que ficam emperrados por anos no sistema de Justiça criminal da Índia. "Investigações de má qualidade em casos de estupro e coleta deficiente de provas na fase preliminar também são fatores que têm ajudado os detentores de poder e conexões políticas a saírem livres", disse Velankar.
Falha na proteção das mulheres
Grupos de direitos humanos afirmam que as mulheres do nível mais baixo das discriminatórias hierarquias de castas seculares da Índia - conhecidas como dálite - são particularmente vulneráveis à violência sexual e a outros ataques.
Eles dizem que os homens das castas dominantes geralmente usam a violência sexual como uma arma para reforçar as hierarquias repressivas de gênero e casta.
O estupro coletivo e assassinato de Jyoti Singh, estagiária de fisioterapia de 23 anos que ficou conhecida em todo o mundo como "Nirbhaya" (que significa "destemida"), em dezembro de 2012, provocou indignação e colocou as mulheres no centro das atenções no país, levando a leis mais rígidas sobre violência sexual e à introdução da pena de morte para estupro.
Apesar disso, os crimes sexuais não desapareceram. A natureza do estupro se tornou mais agressiva, mais brutalizada e, até certo ponto, se tornou uma forma de vigilantismo e gangsterismo.
Apesar de um aumento no número de casos de estupro relatados e de cada vez mais mulheres se manifestarem, a taxa de condenação no país continua baixa.
Em muitos casos, a falta de provas é frequentemente citada como motivo para a baixa taxa de condenação ou para as condenações serem anuladas por tribunais superiores.