Puxões de cabelo, quarto mofado, pus no ouvido, dores de dente, massagem nos pés da patroa, roupas "nojentas" e assaduras sob os seios. Esses são alguns dos relatos fornecidos por funcionários sobre a vida da empregada doméstica que teria sido mantida em condições análogas à escravidão na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) Jorge Luiz de Borba e sua mulher, Ana Cristina Gayotto de Borba por mais de 40 anos.
O Estadão teve acesso aos depoimentos de 11 pessoas que trabalharam e trabalham na casa dos investigados, de cinco dos seis irmãos que a empregada tem na cidade de São Paulo, do próprio magistrado e da esposa. Trabalhadores que passaram pela residência dizem que a vítima não tinha amigos, nem contato com a família e se comunicava por meio de grunhidos por causa da sua surdez.
Nesta quinta, 7, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou o desembargador a ver mulher mantida sob escravidão e o retorno dela à casa dele. A decisão é do ministro André Mendonça.
O Ministério Público do Trabalho começou a investigar o caso em setembro de 2022 e localizou os seis irmãos de Maria. Todos moram na capital paulista. Nos seus depoimentos, eles disseram que querem viver com a irmã.
"Sinto revolta porque eu e todos os meus irmãos, filhos de uma mulher preta e pobre, fomos alfabetizados e tivemos educação, mas ela, que vivia com desembargador, não teve", disse uma das irmãs.
Pus e sangue no ouvido
O caso foi aberto a partir de uma denúncia anônima em setembro de 2022. No começo das investigações, uma das ex-funcionárias ouvidas pelo Ministério Público disse que Maria dormia em um quarto "cheio de mofo", fora da casa. Algumas testemunhas chamaram a residência dos investigados de "casa grande".
"Teve uma ocasião em que faltou luz e levaram Maria para dormir com ela (Ana Cristina) e a mãe, que sentiu um cheiro ruim. Quando fui acordar Maria, percebi que no ouvido tinha uma poça de sangue e pus", disse a funcionária. Essa mesma funcionária disse ao MP que comprou sutiãs e deu banho em Maria por causa das assaduras que ela possuía sob os seios.
Em alguns depoimentos, funcionários dizem que Maria se queixava de dor de dente com frequência.
Roupas 'nojentas'
Outra ex-funcionária que falou ao MP disse que a vítima "jamais foi considerada da família". "A roupa de Maria era nojenta. Ela usava roupas velhas doadas pela mãe de Borba, já falecida."
A testemunha contou que os empregados não podiam sentar à mesa junto com os investigados e nem comer a mesma comida. Ela contou sobre um episódio em que brigou com a filha do desembargador por ter dado comida escondido para Maria.
Puxão de cabelo
Em outro depoimento, uma testemunha disse que Ana Cristina costumava brigar com a vítima. "Quando Maria não fazia uma tarefa certa, dona Ana puxava o cabelo dela ou beliscava, e Maria voltava para a cozinha chorando."
As empregadas da casa compravam absorventes para Maria, que "muitas vezes andava com a roupa manchada de menstruação". Essa mesma testemunha disse que "eram as demais empregadas que davam algum remédio ou chá" quando Maria ficava doente.
Massagem nos pés
Três testemunhas disseram ao Ministério Público que Maria fazia massagens nos pés de Ana Cristina, às vezes "por horas'. Uma funcionária dos investigados, que afirma dormir no serviço com a filha, disse que "achava normal" a massagem.
Quarto mofado
A casa onde o desembargador e a esposa moram fica dentro de um condomínio fechado na ilha de Florianópolis, próximo de um morro. Uma das testemunhas disse que o quartinho em que Maria dormia tinha um riacho embaixo e estava com muito mofo.
"Quando fui trabalhar na casa, limpei todo o quarto da Maria, que estava todo mofado", disse a ex-funcionária. Ela afirma que jogou várias roupas da vítima no lixo e que a porta do quarto de Maria ficava destrancada "porque se a Ana chama, tem que atender".
O que dizem os investigados?
Além das onze testemunhas e dos cinco irmãos de Maria, Jorge Luiz de Borba e sua esposa Ana Cristina também depusera ao Ministério Público. Os dois disseram acreditar que Maria tem problemas cognitivos. Ana Cristina afirmou que a vítima "precisa de cuidado o tempo todo" e disse desconhecer os familiares de Maria.
Borba disse que "não chegou a inscrever Maria na Previdência, porque sabe que ela jamais será abandonada por seus filhos" e "que já chegou a pensar em adotar formalmente Maria, mas via muitas dificuldades documentais". O desembargador disse a amar "como se fosse sua filha".
Os dois negaram todos os crimes pelos quais são investigados. Além do procedimento no MP, Borba responde a uma reclamação disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por causa do episódio.