Na manhã da última quarta-feira (29), uma reintegração de posse dentro do território quilombola de Vista Alegre, no município de Alcântara (MA), foi marcada por repressão e violência. De acordo com quilombolas da região, a ação teve a presença ostensiva das Forças Armadas e Batalhão de Choque. Além disso, bombas de efeito moral e balas de borracha foram jogadas sobre os moradores da comunidade, certificada pela Fundação Cultural Palmares.
"Vieram com truculência em uma comunidade pequena, com bala de borracha, gás lacrimogêneo. Tem imagem de idoso passando mal. Atingiram a minha sobrinha [criança] na cabeça, atingiram meu tio", conta Moisés Costa Santos, de 36 anos, quilombola da comunidade que recebeu a ação de reintegração.
Durante a ação, duas casas, um restaurante e dois quiosques da comunidade que estava em um mesmo terreno foram derrubados. Segundo nota das instituições representativas das comunidades quilombolas de Alcântara/MA, a ação de reintegração de posse, em trâmite na 3° Vara Federal Cível da Justiça Federal do Maranhão, é demandada pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e é movida pela Advocacia Geral da União (AGU) contra um restaurante privado construído pela família de Moisés.
A comunidade de Vista Alegre, que abriga cerca de 50 famílias, está localizada dentro de uma área que prevê a expansão do CLA para atender a demanda de acordos comerciais bilaterais firmados com outros países.
"A comunidade situa-se no centro de uma disputa histórica com os militares da Força Aérea Brasileira lotados no CLA, que ilegalmente sustentam serem proprietários da área, na contramão da Constituição Federal de 1988 e decisões e sentenças judiciais que reconhecem essa área como pertencente às comunidades quilombolas e determinam a União regularização e titulação coletiva, o que nunca foi feito", destaca a nota.
Criança atingida durante ação | Crédito: Quilombolas de Vista Alegre
Moisés Costa Santos, de 36 anos e quilombola da comunidade, conta que o empreendimento alvo da ação de reintegração era um restaurante que foi criado dentro da sua própria moradia.
"Era uma casa no começo, depois nós começamos a ver que as pessoas começaram a vir para o local, porque é área de praia. Então achamos que a gente deveria expandir e vender comida para ganhar um dinheiro, porque a vida aqui não é fácil só com a pesca e a lavoura", explica Moisés. "Todos nós que trabalhávamos no restaurante éramos só da nossa comunidade, ou seja, o emprego era para todos nós da comunidade", complementa.
Ele conta que, quando construiu o restaurante, representantes do CLA começaram a ir ao local e falar que seria necessário um aval para o funcionamento. "Isso aqui é uma luta de quarenta anos. Antes de eu ter construído o espaço, meu avô já tinha essa luta. Eles chegaram aqui em 1983 e a nossa estadia aqui é muito além disso", comenta Moisés.
"A ideia que eles tem é que nós não podemos ter nada, que quilombola não pode crescer na vida, principalmente nessa área de praia", conta Moisés, que destaca que o local onde estavam os imóveis fica há cerca de 50km de onde está o CLA.
O quilombola compartilha que, durante a ação, havia cerca de cinquenta veículos, como ônibus, ambulância e helicóptero. "Eles chegaram dominando o espaço e tomando conta de tudo. Eu e minha comunidade colocamos pneus como barreira, fomos até eles, mostramos a última decisão do juiz federal dizendo que não existia ação de reintegração na data, que a DPU estava cuidando do caso", conta.
"Quando eles chegaram, a primeira coisa que fizeram foi me prender para evitar mais resistência. Depois que derrubaram as casas, me soltaram", complementa. Confira abaixo imagens gravadas da ação.
Segundo conta Moisés e a nota dos representantes quilombolas, o restaurante encerrou as atividades de atendimento há pouco mais de ano, assim que tomou conhecimento do processo, e foi formalmente dissolvida em maio de 2022. Desde então, o espaço funcionava como moradia e para eventos religiosos da comunidade.
"Além da evidente perda de objeto da ação, o encerramento das atividades por parte da ré sinaliza para a parte ativa no processo interesse em resolver a questão de outra forma. No entanto, optou-se pela solução mais dura e ácida, o que reforça a tese de desarrazoado uso da força e violência para demonstração de poder dos militares do CLA na região. Não há outra razão, senão essa para justificar tamanha arbitrariedade e uso ilegal da força policial no cumprimento da ordem de despejo", comenta a nota das entidantes.
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Segundo Moisés, que agora se hospeda na casa de uma tia, os militares continuam acampados no local. "Toda hora passa viaturas deles, avião fica rondando a comunidade, as crianças já ficam em pânico". Um protesto pacífico está sendo agendado pelas comunidades de Alcântara para os próximos dias na sede da cidade contra a presença do CLA na região.
Posicionamentos
A nota dos representantes quilombolas de Alcântara pontua que, antes da data da reintegração, no dia 14 de março, ofícios foram encaminhados à Casa Civil da Presidência da República, ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, ao Ministério da Igualdade Racial, à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP) e à Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV) (vinculado ao SEDIHPOP) do Maranhão e ao Ministério Público Federal.
O ofício relatou a situação da comunidade de Vista Alegre e solicitou evitar o cumprimento da ordem, mas nenhum dos órgãos mencionados comunicou, na ocasião, quais medidas foram adotadas para evitar o ocorrido.
A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com os órgãos. A Sedihpop informou que, por meio da Coecv, está acompanhando o caso dos quilombolas de Vista Alegre e permanece em contato com a comunidade para acompanhar a conclusão do procedimento e receber denúncias de eventuais vítimas de violações de Direitos Humanos.
"O caso foi triado e identificou-se que não se enquadrava no escopo da Comissão, por envolver disputa por imóvel individual e já sem ocupantes, conforme alegado pelo próprio Réu. Assim que teve confirmação de que a execução do mandado ocorreria no dia 29/03/2023, a Coecv manifestou-se ao Juízo para recomendar o adiamento e definição de uma nova data, com o objetivo de viabilizar a adoção de medidas de prevenção de conflitos e reforçar, junto à Comunidade, a informação de que as demais residências não seriam afetadas".
Além disso, o órgao pontua que informou à Secretaria de Acesso à Justiça, do Ministério da Justiça, da existência de ordem judicial pendente de cumprimento para o dia 29 e da necessidade de adotar medidas para prevenir conflitos com a comunidade durante a operação.
"Na quarta-feira (29), a Sedihpop acompanhou a execução de mandado de reintegração de posse na Pousada e Restaurante Vista Del Mar. A operação teve como objetivo a execução de decisão judicial e tem efeito apenas sobre a pousada, que já havia sido declarada desativada, e não se destina à remoção da Comunidade Quilombola Vista Alegre. Portando, a operação não se destinou à remoção de moradias ou de áreas de produção. Foi requerida à Prefeitura Municipal a adoção de medidas assistenciais a indivíduos afetados pela operação", declaram.
Já o Ministério Público Federal faz uma investigação para entender se houve extrapolação dos atuais limites da área ocupada pela União pelo Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). "Caso seja constatada irregularidade durante a apuração, o MPF deverá atuar para garantir a plena retomada da área pelas comunidades quilombolas", respondem.
O Ministério da Igualdade Racial (MIR) e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) repudiaram o uso excessivo da força e as violações de direitos ocorridas. Os órgãos também já estão em diálogo com as instâncias governamentais competentes, federais e estaduais, e afirmaram o compromisso com a proteção das comunidades quilombolas e povos tradicionais.
Salientaram também que o MIR e o MDHC já determinaram que sejam tomadas as medidas necessárias para acolhimento, identificação do número de pessoas afetadas e futuras reparações por meio da Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos, da pasta da Igualdade Racial, e da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, dos Direitos Humanos e da Cidadania.
"Nos próximos dias, haverá uma reunião do Governo Federal para o compartilhamento de soluções sobre situações que envolvem as comunidades quilombolas de Alcântara. Nos manteremos a postos para acompanhamento, identificação das violações e devidas reparações", informaram.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), por meio da Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), ressaltou que os limites das terras quilombolas devem ser mantidos e respeitados. "A busca de mediação para a solução desse conflito, com o apoio do Ministério da Defesa, é a melhor solução para esse caso. Nesse sentido, a pasta está provocando os órgãos do governo para iniciar imediatamente um diálogo com o intuito de resolver a questão de forma pacífica", disse, em nota, o MJSP.
A reportagem pediu posicionamento para a Força Aérea Brasileira (FAB), responsável pelo Centro de Lançamento de Alcântara. Em resposta, o órgão informou que o empreendimento denominado "Pousada Vista Del Mar" havia se estabelecido de forma ilegal.
"A ação se deu em cumprimento à decisão judicial exarada pelo juízo federal da 3ª Vara Federal Cível da seção judiciária do Estado do Maranhão, que requisitou a execução da ordem judicial ao Juiz de Direito da Comarca de Alcântara, considerando a área ocupada irregularmente para exploração de atividade comercial privada".
Também ressaltam que o CLA desconhece determinação para retirada de membros da Comunidade Vista Alegre da área, assim como não possui competência para efetuar o remanejamento de habitantes. "Assim, não haverá qualquer tipo de interferência na referida comunidade", comentam.
A nota produzida pelas entidades quilombolas da região foi assinada pelas Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara (ATEQUILA), o Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (MABE), o Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara (MOMTRA) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Alcântara (STTR/Alcântara).
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*Texto atualizado em 31 de março de 2023 às 23h20: foram incluídos os posicionamentos do MJSP, MIR e MDHC. Atualizado também em 3 de abril de 2023 às 11h21: foi incluído o posicionamento da Sedihpop.