Racismo e capacitismo: como a discriminação racial impacta a vida de pessoas negras com deficiência

No Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, celebrado em 3 de julho, pessoas negras com deficiência debatem sobre ocupar espaços

3 jul 2024 - 05h00
(atualizado às 10h02)

As pesquisas sobre quantas pessoas negras com deficiência existem no Brasil são escassas e não há aprofundamentos sobre dados socioeconômicos dessa população, o que acende um sinal de alerta. A intersecção entre raça e deficiência configura um cenário de dupla exclusão, onde pessoas negras com deficiência enfrentam barreiras discriminatórias em diversos aspectos da vida. 

“A falta de dados sobre pessoas com deficiência já é um dado em si, indicando que nossos corpos estão sendo apagados em uma sociedade majoritariamente negra e com muitas pessoas com deficiência”, comenta Isadora Nascimento, advogada com deficiência visual, ao Terra NÓS

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Isadora Nascimento, advogada com deficiência visual e criadora da página Olhar Cotidiano
Isadora Nascimento, advogada com deficiência visual e criadora da página Olhar Cotidiano
Foto: Reprodução/Instagram/olharcotidiano_
  • O que se tem de mais recente sobre pessoas negras com deficiência é a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2022, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Segundo o levantamento, 18 milhões de brasileiros são PcD, sendo que 18,4% se autodeclaram pretos e pardos e 8,7% se autodeclaram brancos, indica o documento.  

Isadora, uma mulher preta, também atua como consultora de acessibilidade e produtora de conteúdo na página Olhar Cotidiano. Para ela, as urgências da comunidade negra devem ser inerentes à luta das pessoas com deficiência. “Muito se fala sobre pautas pretas, mas não se considera que um corpo com deficiência é duplamente marcado”, pontua. 

Quando pensamos em racismo e capacitismo, no meu caso, também em gênero, precisamos falar sobre a interseccionalidade de corpos pretos com deficiência para entender que não somos invisíveis.

A discriminação racial impacta a vida de pessoas negras com deficiência em diferentes âmbitos, sobretudo na saúde, educação e mercado de trabalho. 

“Por exemplo, a dor de mulheres negras é frequentemente desconsiderada, como na violência obstétrica. Mulheres negras sofrem mais violência obstétrica que mulheres brancas, e mulheres negras com deficiência sofrem ainda mais. Uma mulher surda, sem apoio adequado no momento do parto, como um intérprete de Libras, não consegue sinalizar sua dor”, narra Isadora. 

Mulheres negras já são violentadas pela crença de que suportam mais dor, o que é agravado no caso de mulheres com deficiência.

A violência doméstica também é uma questão a ser discutida, destaca a advogada. Mulheres sofrem violência a cada minuto no Brasil, e mulheres com deficiência não são exceção. Muitas vezes, ao denunciar, pessoas negras já são descredibilizadas e, se tiverem deficiência, a situação se complica. 

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A educação, um dos direitos da pessoa com deficiência que deve ser assegurado em todos os níveis do sistema educacional, é outro setor que escancara a desigualdade. “Precisamos de escolas inclusivas que considerem o acesso de pessoas negras. É importante que as escolas não segreguem corpos com deficiência em escolas especiais, pois a convivência de pessoas com e sem deficiência é essencial para a inclusão.”

Violência policial

Dados do estudo “Pele Alvo: a Bala não Erra o Negro”, realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), revelam que 90% das vítimas da polícia no Brasil são negras. Pessoas negras periféricas e com deficiências também estão expostas a esse risco. 

“Um policial pode dar uma ordem que uma pessoa com deficiência não consiga seguir, resultando em consequências trágicas, como a morte de Genivaldo [Santos] – diagnosticado com esquizofrenia, foi preso no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF), em Sergipe, e submetido à tortura com gás lacrimogêneo por não usar capacete enquando dirigia uma moto”, relembra Isadora.

A influenciadora digital Lelê Martins, a @blogueirapcd, que teve uma perna amputada, relata como o capacitismo e o racismo atravessam pessoas negras com deficiência nas favelas ou espaços esquecidos pelo Estado. É que o debate é sobre sobrevivência, em alguns casos. 

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“Eu, enquanto pessoa negra com deficiência, não vou ser lida como angelical. Vou sofrer outras violências que vão interseccionar o capacitismo e o racismo, como por exemplo ter a minha muleta confundida por uma arma, ‘confundida’ entre muitas aspas, obviamente. É esse tipo de conversa que a gente precisa ter”, diz. 

Lelê tem uma das pernas amputadas e relata o dia a dia no Instagram
Foto: Reprodução/Instagram/blogueirapcd

Lelê comenta que políticas públicas precisam trazer recortes sociais e raciais. “Pessoas com deficiência não têm acesso à escola porque não conseguem descer suas comunidades sozinhas, porque a mãe precisa trabalhar. A gente precisa ir mais para as raízes, para conseguir conversar e debater sobre os temas que são fundamentais e iniciais para uma comunidade que quer se construir plural como ela é.”

Se uma pessoa preta já é desumanizada, ter uma deficiência faz com que ela seja duplamente desumanizada. 

“Uma sociedade sem acessibilidade faz com que pessoas com deficiência não existam. Então, o acesso à educação e outros direitos é uma ferramenta para que pessoas com deficiência possam lutar por si próprias, saber como disputar as coisas, a sua própria existência”, conclui Lelê. 

“Precisamos ocupar todos os ambientes. Corpos negros, especialmente, precisam estar presentes em todas as esferas. É fundamental que entendam que existimos como pessoas com deficiência e negras”, finaliza Isadora. 

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Vidas negras com deficiência importam

O movimento Vidas negras com deficiência importam, criado por pessoas negras com deficiência na busca por uma sociedade antirracista e anticapacitista, criou o relatório “Situação das pessoas negras com deficiência no Brasil”. O documento aponta a discriminação múltipla e interseccional enfrentada por pessoas negras com deficiência e marginalizadas no Brasil e quais medida o país precisa adotar. Abaixo, confira 10 recomendações do relatório ao governo brasilero:  

  1. Garantir a coleta e distribuição de dados demográficos desagregados que incluam deficiência, gênero, cor, e autoidentificação como quilombola ou indígena no Censo nacional e em pesquisas para áreas-chave de desigualdade, como educação, saúde, emprego, bem-estar social, sem-teto, sistema de justiça criminal, violência policial e habitação e saneamento. Suplementar os dados do Censo nacional com um censo específico de deficiência, que adote uma perspetiva interseccional.
  2. Assegurar a consulta às organizações de pessoas negras, indígenas e quilombolas com deficiência no desenvolvimento de todas as políticas de deficiência.
  3. Desenvolver políticas públicas para acabar com a institucionalização, garantindo o direito de todas as pessoas com deficiência de viver com suas famílias ou comunidades, e fornecendo apoio suficiente para que todas as pessoas com deficiência e suas famílias tenham uma vida digna, independentemente de sua posição socioeconômica.
  4. Assegurar remuneração adequada para cuidadores, profissionalizando o cuidado numa ótica transversal nas políticas públicas, o que significa fortalecer a escola pública, o SUS (Sistema Único de Saúde) e outros, para que os familiares possam beneficiar de uma rede ampliada de apoio.
  5. Implementar a avaliação biopsicossocial de deficiência no Brasil, como uma ferramenta para a garantia de diagnósticos, pois a avaliação biopsicossocial reduz o estereótipo médico e garante o acesso ao diagnóstico formal, para que a população negra com deficiência tenha acesso ampliado ao reconhecimento oficial e a todos os direitos que o estado brasileiro garante às pessoas com deficiência. Reconhecer, para fins de políticas públicas, de forma clara e para todos os efeitos legais, as pessoas com deficiência psicossocial como pessoas com deficiência.
  6. Elaborar e fomentar políticas públicas para a inclusão de estudantes com deficiência em todas as esferas e modalidades de educação inclusiva sob uma perspectiva interseccional, buscando não só o acesso, mas também a permanência e sucesso escolar desse público na sala de aula comum da escola comum, promovendo um reforço na fiscalização e no cumprimento das legislações.
  7. Fortalecer políticas públicas de vida autônoma das pessoas negras com deficiência, nomeadamente através do programa moradias independentes, entendendo que essa é uma forma de democratizar o acesso à moradia digna que funciona como estratégia para a emancipação e autonomia de adultos com deficiência.
  8. Integrar de forma sistemática, no contexto de uma educação voltada para a herança cultural africana e afro-brasileira, a história do movimento de pessoas com deficiência.
  9. Integrar nas políticas de segurança pública medidas para combater os altos índices de violência cometidos, por parte do Estado e da população, contra pessoas negras com deficiência, com atenção especial para os mais impactados pela violência estrutural, como mulheres negras com deficiência e pessoas com deficiência intelectual.
  10. Remover as barreiras que impedem mais pessoas negras com deficiência de ingressar e permanecer no mercado de trabalho formal, implementando políticas públicas que abordem o capacitismo estrutural e o racismo na educação, na formação e no trabalho.
Fonte: Redação Nós
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