"Racismo é um obstáculo para toda a sociedade"

Edson Lopes Cardoso, autor de novo livro sobre racismo, faz análise a respeito do movimento negro brasileiro

23 jun 2022 - 10h27
(atualizado às 10h58)
"Se você vive numa sociedade em que o racismo não dá as cartas, a cor da pele não diz nada de uma pessoa"
"Se você vive numa sociedade em que o racismo não dá as cartas, a cor da pele não diz nada de uma pessoa"
Foto: V.Moriyama

Autor de novo livro sobre racismo, Edson Lopes Cardoso afirma que não é possível defender a democracia sem lutar pelo fim dos preconceitos raciais, que impactam não apenas os negros e travam o desenvolvimento do Brasil.Coordenador do Ìrohìn - Centro de Documentação e Memória Afro-Brasileira, o letrólogo, comunicador e educador Edson Lopes Cardoso é um intelectual capaz de fazer uma análise completa do movimento negro brasileiro de um ponto de vista necessário: o de quem sempre militou pela causa dos afrodescendentes brasileiros.

"É a partir de 1988 que se pensa afro-brasileiros e indígenas como seres históricos. Antes, a história era europeia e branca", contextualiza Cardoso. "[O Brasil é] Uma sociedade que negou historicidade aos vistos como menos humanos, onde se afirmou sempre a historicidade dos dominantes."

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Cardoso acaba de lançar o livro Nada Os Trará de Volta - Escritos Sobre Racismo e Luta Política, uma coletânea de 151 artigos escritos nas últimas quatro décadas, em que procurou analisar a maneira como a sociedade brasileira trata grupos minoritários, sobretudo aqueles que sofrem preconceito racial.

Uma discussão que, conforme ele pontua, tem tudo a ver com a democracia — e deveria estar no centro do debate eleitoral. "Um país não pode se dar ao luxo de pegar sua juventude e simplesmente jogar na vala e no lixão, como a população brasileira vem fazendo com a sua população negra há décadas. O que isso significa em termos de perda de capital humano, de possibilidades de realização e de desenvolvimento para um país?", diz o intelectual.

"O racismo é um obstáculo para o conjunto da sociedade, não só para os negros", ressalta em entrevista à DW Brasil. "Se discutir democracia não é isso, essa discussão é falsa, é idiota. Estamos discutindo a afirmação plena de humanidade e possibilidade de realização humana."

DW Brasil: Como o senhor espera que as discussões sobre o racismo estrutural do Brasil permeiem o debate eleitoral neste 2022 de tanta polarização?

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Edson Lopes Cardoso: Eu penso de maneira otimista. Com o governo de Jair Bolsonaro, se ampliou uma preocupação com a democracia. Há a aglutinação de forças democráticas. Como a democracia está no centro do debate, na oposição ao Bolsonaro, imaginamos que, em um país de maioria negra, o tema da hierarquização racial de uma sociedade democrática e igualitária possa ter alguma chance. Porque numa sociedade que tem dificuldade para definir ainda se todos são igualmente humanos ou não, evidentemente que o racismo é [tema] central. A meu ver essa é a questão central.

Esperamos que, com a derrota desse projeto que está aí, se abram possibilidades e se converse efetivamente sobre uma democracia. Porque o racismo e a democracia não têm como conviver, como querem aqui no Brasil. Como conviver postulados de uma sociedade igualitária com uma ideologia que hierarquiza humanos? Não pode, não pode. Se você é democrata, você é antissexista e antirracista, pois são ideologias hierarquizadoras do humano.

Nas últimas décadas o Estado brasileiro implementou medidas afirmativas para buscar inserir o negro de forma mais plena na sociedade, como as cotas raciais. No atual governo, há retrocessos?

Total, total.

Em aspectos práticos ou simbólicos?

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Veja o caso que está acontecendo com os assassinatos na Amazônia [do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips]. Há cargos estratégicos na Funai ocupados por militares e policiais. Indigenistas, antropólogos, pessoas da área foram afastadas. A mesma coisa ocorre em outras áreas. Isso afeta as cotas, quando afeta a assistência estudantil. As cotas foram importantes porque, pela primeira vez, houve uma política pública que era em benefício da população negra. As cotas das universidades são a única política que eu conheço que se afirma em benefício da população negra.

Com as cotas foram ampliadas as possibilidades, e houve então a quebra de padrões de racismo muito fortes, como a ideia da inferioridade intelectual, uma pedra de toque do racismo. Isso influencia na luta. Mostra os caminhos e possibilidades que temos como população.

Um país não pode se dar ao luxo de pegar sua juventude e simplesmente jogar na vala e no lixão, como a população brasileira vem fazendo com a sua população negra há décadas. O que isso significa em termos de perda de capital humano, de possibilidades de realização e de desenvolvimento para um país? O racismo é um obstáculo para o conjunto da sociedade, não só para os negros. Se discutir democracia não é isso, essa discussão é falsa, é idiota. Estamos discutindo a afirmação plena de humanidade e possibilidade de realização humana.

Mas em que medida podemos falar que houve retrocesso?

Simplesmente os órgãos não existem. A Fundação Palmares perdeu sua função real, assim como a área da cultura. Simplesmente os órgãos não funcionam. Solapa-se o financiamento, desviam-se recursos, colocam-se pessoas que não são as adequadas para cumprir tarefas. Formalmente, o cargo está ocupado, mas você vai ver e é um militar estúpido que nada tem a ver com nada. É um momento muito delicado.

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Em um dos artigos do livro Nada Os Trará de Volta - Escritos Sobre Racismo e Luta Política, o senhor traz dados estatísticos de que 70% dos jovens assassinados no Brasil são negros. O título do texto é Pouco Adianta Falar. Se pouco adianta falar, o que podemos fazer?

Você pega a política de segurança pública nesse contexto nosso e não coloca a luta contra o racismo no centro da política, então não está falando de Brasil. Precisamos fazer uma análise do quanto essa violência racial cumpre o controle da população negra no Brasil, de espalhar o terror. Nosso cotidiano é atravessado pelo terror. Esse estado é permanente entre nós, e isso não entra na política. Esperamos que, com uma representação negra mais fortalecida, esse tema possa ser discutido.

Que sociedade é essa? Que criminaliza a aparência? Porque se trata de criminalizar a aparência. Isso ocorre o tempo inteiro, o tempo inteiro, há décadas. Você está à mercê de uma violência institucional. Não é uma violência qualquer, é uma violência fardada, paga, do Estado.

"Não adianta falar" porque é preciso mais representação política?

Exatamente. Não se trata só de denunciar, é preciso ação efetiva. Os partidos precisam dar conteúdo real a suas belas palavras sobre democracia, comunidade. Não se pode continuar falando de sociedade brasileira sem enxergar esse viés desumanizador dessas hierarquizações.

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Em uma sociedade igualitária não seria preciso nem de movimento negro, certo? Seria uma sociedade com políticos negros de todos os espectros…

Concordo. Quem vê a cor da pele como decisiva é o racismo. Cor da pele e nada é a mesma coisa. Cor da pele não significa nada no ser humano, é adaptação ecológica e só. No racismo é que ela é essencial. A sociedade para qual eu luto é aquela em que a cor da pele não tenha significado nenhum. A transformação social é lenta. Mas essa eleição vai trazer avanços.

Nas últimas décadas, houve uma transferência da data mais importante para o povo negro no Brasil, antes o 13 de maio, da abolição da escravatura, para o 20 de novembro, da morte de Zumbi dos Palmares, da Consciência Negra. De que forma Palmares representa a ideia de formação identitária do negro brasileiro?

É a partir de 1988 que se pensa afro-brasileiros e indígenas como seres históricos. Antes, a história era europeia e branca. [O Brasil é] uma sociedade que negou historicidade aos vistos como menos humanos, onde se afirmou sempre a historicidade dos dominantes. Zumbi é o resgate de uma história, é a afirmação de que somos seres históricos, e seres históricos lutando contra a escravidão. Zumbi tem um significado de afirmação coletiva e, ao mesmo tempo, impulsionadora de humanidade. Porque há um limite de Zumbi e de Palmares. Eles não aceitam voltar à escravidão. Zumbi é uma página da história humana, o ser humano que, entre a morte e a escravidão, prefere a morte. Ali é um grande momento de afirmação humana. Não há nada ali que seja não digno de evocação, evocação coletiva.

A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas.
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