Racismo no Brasil: tragédia pouca é bobagem

Não basta destruir memoriais e tentar controlar o que se lembra e o que se busca esquecer. A violência não tem limites

27 mai 2022 - 08h17
(atualizado às 17h42)
Momento em que agentes da PRF jogam gás dentro de viatura com Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos
Momento em que agentes da PRF jogam gás dentro de viatura com Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

Violência contra os yanomami, chacina na Vila Cruzeiro, morte por asfixia em abordagem policial. O racismo segue sendo o sistema de poder que organiza o Brasil, no qual a vida de não brancos tem pouco ou nenhum valor. Minha ideia era dedicar a coluna deste mês à insistência do nosso país em silenciar tudo o que diga respeito aos indígenas - homens, mulheres e crianças que são descendentes dos povos originários desta terra que hoje se chama Brasil. A ideia era tratar de duas situações distintas, mas que comprovam como as violências contra as populações indígenas são múltiplas e se sobrepõem.

A primeira diz respeito à denúncia de um crime feita em 25 de abril: uma jovem yanomami de 12 anos teria sido estuprada até a morte por garimpeiros que invadiram ilegalmente a região de Waikás, em Roraima. Na realidade, o estupro seguido de morte não teria sido o único crime cometido pelos garimpeiros naquele dia, que também teriam lançado no rio uma criança de 3 anos.

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Ainda que o grau de violência desses atos seja indivisível, ou justamente por causa disso, era de se esperar que a grande mídia parasse o quer que estivesse fazendo para não só denunciar, como exigir as medidas cabíveis dos órgãos responsáveis pela Justiça brasileira. Mas, o que tivemos, foram algumas matérias, de veículos mais progressistas, que denunciaram o ocorrido, sem que houvesse qualquer repercussão mais forte. Afinal, tratava-se apenas uma jovem yanomami supostamente estuprada até a morte e de uma criança da mesma etnia jogada num rio em Roraima.

Moradores e policiais ao lado de um corpo coberto após operação policial que deixou 23 mortos na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro
Foto: DW / Deutsche Welle

Se a situação tivesse acontecido em algum bairro da zona Sul do Rio de Janeiro ou da zona oeste de São Paulo com jovens e crianças brancos e de classe média, talvez a dor fosse maior.

Menos de um mês depois, no dia 17 de maio, a antropóloga Sandra Benites enviou uma carta de demissão ao Museu de Arte de São Paulo (Masp) - um dos mais importantes museus brasileiros. Ela era curadora adjunta do museu e estava assinando sua primeira exposição autoral na instituição. E mais: Benites foi a primeira curadora indígena do país, o que fazia do projeto que estava organizando algo muito maior do que ela e o próprio Masp.

No entanto, as instâncias superiores do museu decidiram excluir um conjunto fotográfico que comporia a exposição. De acordo com o Masp, a solicitação das fotografias havia ocorrido fora do prazo estipulado - prazo este que nunca foi devidamente comunicado justamente à curadora da exposição. Poderia até se tratar de um problema de comunicação, não fosse o pequeno detalhe de que as fotografias excluídas eram sobre pessoas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e fariam parte de um núcleo expositivo intitulado "Retomadas".

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O recado estava dado: exposição assinada por indígena até pode (inclusive pega bem), mas indígena trazendo integrantes do MST para o centro da mostra "Histórias Brasileiras", aí já é demais!

Sandra Benites não se curvou aos limites que lhe impuseram e fez o que uma mulher indígena comprometida com uma agenda realmente transformadora poderia fazer: se desligou da instituição.

Mas, como eu disse, falar sobre os silenciamentos e assassinatos de indígenas brasileiros era a ideia original desta coluna. No meio do caminho, alguns policiais do Rio de Janeiro atacaram o memorial construído na favela do Jacarezinho em homenagem às pessoas mortas na mais letal chacina da história da cidade - um memorial que, vale dizer, também homenageava um dos policiais mortos. Uma ação covarde, sem nenhuma validação legal, e que nos lembra de como o controle da memória também é uma forma de exercício de poder. E que, muitas e muitas vezes, esse exercício se dá de forma violenta.

Só que no Brasil, tragédia pouca é bobagem. Não basta destruir memoriais e tentar controlar o que se lembra e o que se busca esquecer. A violência não tem limites.

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Nesta terça-feira (24/03), a polícia do Rio de Janeiro protagonizou mais uma chacina numa favela, agora na Vila Cruzeiro, deixando 23 mortos. Uma ação que vem sendo retratada pela grande mídia como uma operação planejada pelo estado do Rio de Janeiro, na qual algumas baixas já eram esperadas. A mesma mídia que, vale dizer, não deu à mínima para a denúncia do assassinato da jovem yanomami.

Na quarta-feira (25/05), exatamente dois anos depois que George Floyd foi assassinado por policiais nos EUA, Genivaldo de Jesus Santos foi morto por asfixia pela polícia rodoviária em Sergipe

Pode parecer que não, mas todos os casos aqui descritos fazem parte de um mesmo sistema de poder, que historicamente organiza o Brasil. E o nome dele é RACISMO.

A vida de pessoas não brancas, a memória de pessoas não brancas, a autoria de pessoas não brancas continua tendo pouco ou nenhum valor. Enquanto não tomarmos o racismo pelo tamanho que ele tem, o antirracismo continuará podendo ser tomado como uma ação piedosa e arbitrária - sujeita aos modismos de época - de quem goza os privilégios gerados pelo próprio racismo.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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