Racismo, vida na rua e fuga do tráfico: a saga de Manoel Soares até o ‘Encontro’

Apresentador escapou do pai traficante, virou pai de 6 e quebrou ciclo: "paternidade é o mais próximo que um homem chega da divindade"

21 dez 2022 - 17h38

Todas as teorias do mundo não foram suficientes para que Manoel Soares enfrentasse com distância, como um super-herói, o racismo que o filho sofreu na escola. O menino disse ao pai que foi chamado de macaco por um coleguinha de escola. Ele tem seis anos. Manoel tem 43: já sentiu na própria pele o racismo e a dor de ser vítima de infinitas desigualdades. Mas nenhuma dessas dores chega perto da dor de ver sua cria passar pelo mesmo.

Manoel Soares: "Só quem viveu na rua sabe o que é"
Manoel Soares: "Só quem viveu na rua sabe o que é"
Foto: Divulgação

Na reunião de pais, ele levou a queixa do filho até a reunião de pais da escola. O pai do menino agressor disse que o filho não pode dizer essas coisas, e não que ele não pode pensar essas coisas. A ação foi uma cutucada grotesca na ferida já aberta. Manoel sentiu o baque: testemunhava um pai incentivando o filho a ocultar seu racismo. E não a combatê-lo.

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Essa é só uma das tantas pelejas da vida de Manoel, hoje à frente do programa “Encontro”, com Patrícia Poeta. São incontáveis. Pai de seis, o apresentador diz com exclusividade ao Terra NÓS que a paternidade é o que mais aproxima o homem da divindade. 

Paternidade essa que, entretanto, vem regada a desafios: seus dois caçulas foram diagnosticados com autismo. O convívio com os dois, ele conta, se torna um aprendizado diário e um novo jeito de observar as vitórias. Cada gole de água sozinho é uma vitória. Cada colher até a boca é uma vitória. O primeiro ‘eu te amo’, do mais velho para o pai, veio aos quatro anos. Foi uma vitória.

“Esse ‘eu te amo’ foi muito especial. Fui às lagrimas. Ter filhos neurodivergentes me fez enxergar o mundo com outra ótica. A chegada deles ressignificou nossa família. Tudo que eu aprendi com minha mãe e com minha família fez grande diferença para a criação dos meus filhos. Para aprender, também é preciso se dedicar, é preciso aprender desde cedo que nossa primeira comunidade é a nossa família e como é importante sabermos cuidar e zelar por ela.”

Manoel Soares e um dos filhos
Foto: Reprodução/Instagram

A mãe de Manoel foi responsável por segurar a onda quando o pai dele, que era traficante na Bahia, abandonou a família. Aos 28 anos, ela fugiu de Salvador com quatro filhos pequenos para tirá-los de um contexto de violência. “Meu pai me enxergava como um problema. Hoje, consigo ver isso como fruto da história negra brasileira durante o período de escravidão: se um pai amasse um filho, na hora da separação a criança sofreria mais, então o pai cortava o elo de amor para que o filho não se tornasse tão vulnerável. Talvez tenha sido o que meu pai fez”.

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A mãe, então, assumiu tudo por dois: as broncas, os afetos, a educação, o beijo antes de sair para trabalhar –um em cada filho. A iniciativa de fazer Manoel deixar sua base na Bahia foi para protegê-lo. Inserido num contexto de violência, Manoel começou a reproduzir a violência que via. “Minha mãe teve a sabedoria de observar e agir para me proporcionar um futuro melhor”. Conseguiu um emprego para o filho na gráfica de um tio, no Rio Grande do Sul. “A atitude dela na época me preservou e contribuiu para que eu chegasse onde estou hoje, porque foi em Porto Alegre que tive a oportunidade de iniciar na TV, e iniciar minha carreira como comunicador”, relembra o apresentador.

Mas o caminho não foi linear. Logo, Manoel perdeu o emprego. O irmão, que tinha ido para a capital gaúcha com ele, voltou para a Bahia. Manoel quis ficar. A falta de emprego e de dinheiro fez com que ele terminasse dormindo nas ruas, sob um viaduto na zona norte de Porto Alegre. Ele deitava no chão às 23h, e às cinco da manhã, os caminhões já estavam a milhão por ali. Era hora de levantar.

Ganhava uns trocos agindo como segurança de travestis que ficavam sob o mesmo viaduto, que constantemente eram agredidas e apedrejadas. O pedido de proteção por parte delas foi acatado por Manoel, aos 20 anos, que começou a ganhar um dinheirinho para tentar sair da condição de rua. Foram quatro meses assim.

“Só quem viveu na rua sabe o que é. Ninguém imagina que as ruas também ensinam, e isso ultrapassa a linha do imaginário. É difícil e delicado até pela forma com que a maioria das pessoas enxerga essa realidade, como violenta e inferior. A pior parte para os moradores é a ideia de que sair dessa vida é algo impossível, quase que utópico, por falta de oportunidades e até mesmo por se tratar de uma parcela social que está à margem”, conta.

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“Os moradores de rua são invisíveis dentro de uma sociedade, e isso para quem passa na pele, dói.”

A mãe de Manoel insistia que o roubo, as drogas e o tráfico eram saídas impensáveis. Ele tinha isso em mente. Rìgida e de família evangélica, ela fazia o filho Manoel ler a Bíblia com frequência. Ele leu a obra, na íntegra, quatro vezes. Na rua, fez seu corre até conseguir um emprego e começar do zero. 

Manoel Soares no estúdio do "Encontro": "Para existir evolução em grande escala, o povo branco precisa repactuar o seu compromisso com a liberdade dos pretos"
Foto: Reprodução/Instagram

Foram vinte anos até que as ruas mudassem de lugar na vida de Manoel, o do respeito, o da memória, e não mais o lugar frio que elas já proporcionaram. Hoje, no Encontro, compartilha outras vivências, mas sem esquecer as dores. Manoel se diz realizado em muitos sentidos, e –mais uma lição de mamãe– trabalhar “alegremente” é o segredo do sucesso. 

“Vivi e presenciei muita coisa. Hoje, acredito que as pessoas negras estão conquistando espaço com competência e com atenção. Para existir evolução em grande escala, a relação de preconceito e desigualdades com a comunidade negra deve passar também pelo povo branco, que precisa repactuar o seu compromisso com a liberdade dos pretos. É uma adequação entre a conduta e discurso. Trata-se de um processo árduo de equidade entre preto e brancos, acredito que essa abordagem é o que poderá nos levar para outro lugar.”

Fonte: Redação Nós
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