A artista Kaê Guajajara foi procurada pela produção do “Festival do Futuro”, que rolou na posse de Lula. O convite englobava uma música dela entre os tantos artistas presentes: a apresentação seria curta e rápida, sendo Kaê a única indígena entre as pautas de diversidade escaladas para o festival. Ela aceitou, mas propôs algo diferente: que, além dela, outros dois músicos indígenas se apresentassem junto – e que o repertório pudesse ser mais longo. Fechado. Kaê se apresentou ao lado de Kandu e do grupo Nativos Mcs, num set list de quase quarenta minutos.
Indígena, não-binária, cria da Maré e rapper: Kaê Guajajara lança seu próximo álbum em 21 de abril, dois dias depois da data que celebra os povos indígenas. Em entrevista exclusiva ao Terra NÓS, ela compartilha detalhes bonitos e dolorosos da trajetória que percorre. Relembra a tentativa de apagar suas origens quando deixou a aldeia em Mirinzal, no Maranhão, para morar em uma das maiores comunidades do Rio de Janeiro, a Maré. Detalha as tantas violências sofridas –entre elas uma violência sexual–, que, posteriormente, foram chave para que ela decidisse escancarar suas raízes e se fixar como alguém que canta ancestralidade.
“Tem que ser normal”
Kaê Guajajara cresceu numa aldeia em Mirinzal, no interior do Maranhão. A mãe, indígena e natural de lá, desceu do norte para a cidade grande em busca de emprego. Ela e outras meninas da aldeia foram contratadas por madames, donas de casas enormes, para trabalharem como empregadas domésticas. Elas tinham 14 anos. A chegada ao Rio foi marcante para a mãe de Kaê: eram quatro da manhã quando aportou na casa em que trabalharia e não pôde sequer descansar.
“A madame disse que ela tinha de aprender a fazer café naquela hora para que, às 6h30, já tivesse café pronto. Disse que minha mãe não tinha que descansar”, conta a rapper. A mãe morou no Complexo da Maré até os 18 anos, quando engravidou de Kaê. “Minha mãe quis que eu nascesse e crescesse na aldeia. Ela voltou para lá. Meu pai dividia o tempo entre o Rio e Mirinzal”.
Quando Kaê fez dez anos, as duas voltaram definitivamente para a Maré. Entre os moradores, a mãe era a “índia”. Kaê, enquanto pequena, era a “filha da índia”. “Quando cresci, também virei ‘a índia’. “As pessoas não faziam questão de saber nossos nomes. Éramos índia e filha de índia. Depois, índia e índia. Foi uma mudança muito brusca, principalmente porque minha mãe tentou a todo custo me blindar da violência que ela sofreu. Ela pedia que eu não me pintasse, que eu ‘me vestisse normal’. Lembro muito dela dizendo essa palavra: ‘Você tem que ser normal’”, conta.
Apagamento como tentativa de sobrevivência
“Aqui, a pessoa ‘filha da índia’ passou por muito apagamento por parte das pessoas que conviviam com ela. Na escola, sempre me trataram como se eu fosse maluca e, pela ignorância, diziam que minha mãe e eu éramos macumbeiras. Eu não entendia o porquê naquela época. A gente usava muita semente, muita pena. As pessoas nos tratavam como se nossas roupas fossem uma fantasia. A gente nunca tinha um nome”, diz.
Kaê conta que, além de precisar se distanciar de suas raízes, sentiu na pele a hiperssexualização de seu povo. “As pessoas diziam que eu era exótica, pensavam que eu era um bicho e não um ser humano”. A percepção e o empoderamento vieram depois de uma violência explícita, sexual, da qual foi vítima enquanto tentava se adequar ao que a sociedade carioca pedia. Ela relata:
“Eu trabalhava em um hotel como recepcionista jovem aprendiz, apagada. Já tinha aceitado que tinha de ser ‘normal’. Um dia, saí às dez da noite e peguei o mesmo ônibus que sempre pegava. Só que ele quebrou no caminho. Todo mundo desceu e esperou pelo próximo, que demoraria muito, e no dia seguinte eu precisaria acordar muito cedo porque tinha aula. Decidi não esperar. Saí andando pela Gamboa. Até que fui violentada sexualmente por um grupo de homens. Hoje, consigo falar com mais leveza. Essa violência foi um marco de identidade, porque eu estava sofrendo uma violência sexual no centro do Rio de Janeiro, na rua, sendo chamada de índia. Por que eu estava vivendo aquilo, de que minha mãe tentou tanto me blindar, se eu estava lutando o tempo todo para ser normal? Eu estava com roupa de trabalho, não estava pintada. E eu passei por essa violência sendo chamada de índia.”
Kaê procurou um posto de saúde, tomou remédios antivirais para evitar ISTs e foi encaminhada para terapia. Ela fez tudo isso sem revelar à mãe o que havia acontecido.
A mãe de Kaê teve vivências dolorosamente parecidas. Por isso a insistência para que a filha abdicasse de suas pinturas. “Minha mãe passou por experiências ainda piores quando criança, pré-adolescente, pelas mão de madeireiros em Mirinzal. Isso marcou a vida dela. Não tive coragem de chegar em casa e dizer: ‘Mãe, mesmo normal, aconteceu comigo’. Não tive coragem de dizer que o que ela ofereceu para mim não funcionou. Naquele momento, era muito delicado”.
Kaê entendeu, então, que se estava sofrendo por algo que estava apagado, ela precisava ter coragem para assumir quem é. “Apagada eu não sabia como sobreviver. Essa violência me deu um gatilho enorme de que precisava lutar por mim e pelo meu povo. De que precisava me impor para que as pessoas não achassem que tinham direito sobre o meu corpo”.
“A cidade não é feita para pessoas livres no geral. Isso permeia o discurso da hiperssexualização de corpos indígenas, porque, mesmo me reconhecendo como pessoa não-binária, sou lida como mulher cisgênero. Foi um processo de reconhecimento doloroso, mas necessário.”
O renascimento
Kaê canta desde de menina. Fez parte de uma banda de rap na Maré formada por artistas angolanos e por ela, indígena. As pautas das canções eram sempre identitárias, de denúncia às violências que sofrem seus corpos fora de seu espaço. Na virada de chave, pautada pela violência da qual Kaê foi vítima, ela decidiu cantar sobre seu povo na cidade.
Surgiu, então, seu primeiro trabalho, Hapohu, lançado em 2019. Ela decidiu viver suas origens apesar do receio da mãe. Passou a frequentar a aldeia Maracanã e seu discurso foi afinando. “Fui tendo um letramento de quem eu era. Crescendo, escrevendo, desabafando e tendo a música como pano de fundo”.
“Quando minha mãe percebeu que eu estava voltando às origens, ficou bem triste comigo; resistiu bastante. Ela falava ‘vá à aldeia, conheça, mas me deixe fora disso. E muito cuidado com o caminho pelo qual você está indo’. Eu me pintava e ela pedia que eu não passasse urucum nem jenipapo [tinta de uma fruta que fica duas semanas na pele]. Mas eu fazia. Me pintava com os parentes.”
Kaê trabalhava em um hotel como recepcionista e a pintura facial não foi bem recebida. Chegou ao trabalho e o gerente veio a seu encontro. “Ele disse ‘o que está acontecendo? Por que você está com a cara toda pintada, está achando que é alguma índia?’ Eu disse que sou indígena e que estava vivendo minha cultura. A resposta foi que ali era coisa séria, era trabalho, e que eu tinha que estar normal. ‘Tire toda essa pintura, essa pena, coloque um brinquinho bem pequenininho e uma maquiagem suave’”.
Mas a tinta só sairia em 15 dias. O gerente disse que ela tomaria uma advertência e ficaria 15 dias afastada porque “não podiam ter uma índia atendendo a recepção do hotel”. “Fui demitida porque insisti em usar jenipapo. Ainda tentei trabalhar em alguns lugares depois, mas essa questão sempre pegava. A pintura para nós, indígenas, é uma forma de proteção. A gente se protege com essas pinturas e, na cidade, aí é que a gente precisa fazer isso”.
A mãe ficava brava com a insistência da filha. “Jenipapo não vai encher sua barriga”, dizia. “O que você quer da sua vida? Se pintar e ficar andando linda e bela sem conseguir trabalhar?”. A música foi ganhando espaço, a visibilidade foi crescendo e Kaê foi seguindo o caminho da arte. “Quando minha mãe começou a ver as pessoas me reconhecendo na rua e me agradecendo pelo meu trabalho, quando ela via os shows lotados, ela ficava feliz. Sempre me motivou a cantar. Foi um momento de reconhecimento entre a gente. Ela começou a fazer terapia e, com o tempo, se reconectando com sua cultura”.
Mãe e filha passaram a cantar na lua cheia, a sentar à beira da fogueira, e todas as memórias que a mãe de Kaê foi forçada a apagar para sobreviver foram voltando e tomando espaço.
A posse de Lula
A segunda obra de Kaê, Kwarahy Tazyr, foi lançada em 2021. Neste abril, vem mais um disco. E foi em 2023 também que rolou um convite importante: se apresentar no festival da posse do presidente Lula. Ela conta:
“Fui muito bem respeitada pela produção, que fez o que pôde dentro do que conhece. Mas vi também muita coisa para mudar. Eu ia entrar para fazer uma música. Comecei a questionar: é um festival do futuro e a gente está falando de um indígena fazendo uma música? Temos headlines com bandas diversas. Um indígena não pode representar a resistência do momento. Expliquei isso à produção e fui ouvida.
Consegui chamar mais dois artistas indígenas para cantar e nosso repertório teve 40 minutos. Foi incrível começar desse jeito. Consegui expandir para que a gente pudesse passar minimamente uma diversidade. Estamos caminhando a passos bem curtos, mas é um caminho.”
Kaê acredita que a pauta indígena ainda é muito menosprezada dentro dos movimentos pró-diversidade.
“Quando falam em diversidade, qual a primeira coisa que vem à cabeça? Pessoas pretas. Quando falam em LGBTQIA+, geralmente quem ganha espaço é o homem cisgênero branco gay. Raramente vamos ver uma pessoa trans indígena com ‘mó’ espação; que, além da luta, vai cantar sobre coisas aleatórias. São poucos. A gente não vai falar somente de luta, a gente vai falar do que quiser.”