Região onde jornalista e servidor desapareceram sofre com caçadores e ataques armados

Postos de controle da Funai foram alvos de repetidos atentados nos últimos anos; fiscalização frágil e fauna abundante estimulam caçadores ilegais a invadir território.

6 jun 2022 - 16h15
(atualizado às 17h11)
Guarita da base flutuante de fiscalização da Funai no rio Ituí-Itaquaí, que já sofreu vários ataques a tiros
Guarita da base flutuante de fiscalização da Funai no rio Ituí-Itaquaí, que já sofreu vários ataques a tiros
Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real / BBC News Brasil

A Terra Indígena Vale do Javari, onde o jornalista britânico Dom Phillips e o servidor da Funai Bruno Araújo Pereira estiveram antes de desaparecerem no domingo (05/06), sofre há anos com ataques armados a postos de controle da Funai e invasões de caçadores ilegais.

Phillips e Pereira passaram alguns dias na região, onde Phillips entrevistou indígenas sobre as invasões ao território. Eles desapareceu quando estavam fora da terra indígena e voltavam de barco pelo rio Itaquaí até a cidade de Atalaia do Norte (AM).

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Indígenas dizem que a dupla sofreu ameaças durante os trabalhos. Autoridades federais afirmaram que vão realizar buscas na região.

A Terra Indígena Vale do Javari, que abriga o maior número de etnias em isolamento voluntário no Brasil, vive há vários anos um conflito entre caçadores ilegais e indígenas.

Entre novembro de 2018 e setembro de 2019, um posto da Funai que busca controlar o acesso ao território foi alvo de oito ataques armados.

As agressões são atribuídas a pescadores e caçadores ilegais, que teriam alvejado o posto após terem entrado no território indígena sem autorização.

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Na época, a BBC entrevistou servidores e colaboradores locais da Funai, que ameaçaram paralisar os trabalhos por falta de segurança e cobraram órgãos federais a agir.

A base atacada é principal porta de entrada para o Vale do Javari, área procurada pelos caçadores ilegais por causa de sua rica fauna.

Na época, servidores e colaboradores da Funai enviaram ofícios à entidade pedindo o apoio permanente da Polícia Federal, do Exército ou Força Nacional para manter as atividades.

Também em 2019, um pescador foi baleado próximo de uma das aldeias do povo Korubo, dentro da terra indígena. O revide veio duas semanas depois, quando dois adolescentes dessa etnia foram atacados por pescadores.

Ataques a tiros

Em novembro de 2019, oito homens em um canoão (canoa de 12 metros usada pelos pescadores e caçadores) dispararam na base da Funai quando um colaborador indígena apontou o holofote para a embarcação, procedimento usado para iniciar a averiguação.

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Dois dias depois, outros três homens usaram o mesmo modus operandi: atirar contra a base ao menor sinal de reação. Ninguém ficou ferido.

Após os ataques, o então presidente substituto da Funai Alcir Teixeira esteve na região e conversou com os funcionários.

As suspeitas

Investigações às quais a BBC teve acesso na época apontavam que os ataques partiam de pescadores e caçadores ilegais de Atalaia do Norte (AM) financiados sobretudo por grupos de contrabandistas de animais de Tabatinga (AM) e Benjamin Constant (AM), as duas maiores cidades da região, a 1.100 quilômetros de Manaus. Os animais são vendidos para compradores brasileiros, peruanos e colombianos.

Atalaia do Norte, com 15 mil habitantes e terceiro menor IDH do Brasil, é o município mais próximo da confluência entre rios Ituí e Itaquaí, na entrada do Vale do Javari. A junção dos dois rios foi a primeira a receber uma base de proteção por sua localização estratégica, ainda em 1996, no processo de estabelecimento de contato com o povo Korubo.

Os conflitos na região são antigos. Em 2000, um grupo de cerca de 300 pescadores autodenominados de Movimento dos Sem Rio, de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, atacou a base do Ituí-Itaquaí e a sede da Funai em Atalaia do Norte com coquetéis molotov.

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Rio Itaquaí na região da Terra Indígena Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM); funcionários de quatro bases da Funai na região afirmam que vão paralisar as operações de controle e fiscalização da entrada e saída do território
Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real / BBC News Brasil

Houve confronto e troca tiros com servidores do órgão indigenista e fiscais do Ibama, conforme noticiou na época o jornal amazonense A Crítica. A homologação da Terra Indígena em 2001 resultou na retirada, mediante indenização, da população não indígena do Vale do Javari — pessoas que chegaram à região no começo do século 20, durante o primeiro ciclo da borracha.

Uma parte delas se estabeleceu em Atalaia do Norte depois da homologação e, a partir daí, o confronto entre indígenas e não indígenas, antes frequentes, tornaram-se esporádicos. No fim de 2018, as disputas voltaram a ocorrer.

Na época, o líder indígena Clóvis Marubo afirmou que as atividades ilegais no território aumentaram após o início do governo de Jair Bolsonaro. Segundo ele, cortes de servidores e o contingenciamento de recursos tinham "empoderado os invasores".

A Terra Indígena Vale do Javari abriga os povos Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo.

Há ainda outros dez subgrupos isolados confirmados e mais quatro em estudo, num território do tamanho de Portugal.

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Confrontos

Em outubro de 2019, um pescador foi baleado e deu entrada no hospital de Atalaia do Norte. A versão corrente no povoado é que ele foi ferido quando pescava perto de uma das aldeias do povo Korubo. Duas semanas depois, houve o ataque aos dois adolescentes Korubos, atacados por pescadores enquanto pescavam em uma lagoa.

A primeira das quatro aldeias Korubo está a 30 minutos de barco da base do Ituí-Itaquaí.

Sinais de confronto vêm se acumulando entre etnias indígenas na região e pescadores e caçadores da região de Atalaia do Norte, no Amazonas, cidade que tem o terceiro pior IDH do país
Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real / BBC News Brasil

Pirarucu, tracajá, queixada e anta são os animais mais procurados pelos pescadores e caçadores. Enquanto um tracajá é vendido por pelo menos R$ 100, um pirarucu ainda jovem não é vendido por menos de R$ 1 mil na região. Pela extensão e dificuldade de navegação nos rios do Vale do Javari, cada expedição, que costuma contar com entre 6 e 8 homens, precisa toda a capacidade de carga da canoa para ser lucrativa.

Já a Associação dos Pescadores de Atalaia do Norte afirmou à BBC em 2019 que tentava organizar os pescadores que praticam o manejo legal - algumas famílias ribeirinhas - nos lagos em volta da terra indígena.

No entanto, esses lugares já foram muito explorados e não são suficientes para a demanda externa, sobretudo peruana e colombiana. Por isso, segundo colaboradores da Funai, parte dos ribeirinhos que saíram do território indígena na época da demarcação ficaram sem o sustento e passaram a recorrer a atividades ilegais.

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Documentos de investigações à que a BBC teve acesso em 2019 apontaram que o assassinato do colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira, naquele mesmo ano, teve relação com essa economia ilegal. Maxciel passeava com a família na principal avenida de Tabatinga quando foi baleado. Meses antes, ele havia organizado uma operação que apreendeu grande quantidade de pesca e caça ilegal.

Outro fator que aumenta a pressão no Vale do Javari é o fato de que muitos dos pescadores e caçadores viviam na terra indígena antes da demarcação. "Eles sabem onde está a fartura e é justamente próximo das nossas aldeias, porque não fazemos uso comercial da selva. Mas tem sido tanta a caça e a pesca que já está afetando a nossa comida", afirmou, em 2019, Varney Thoda Kanamari, então vice-coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

* Com reportagem de Rodrigo Pedroso

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