"Sangrei por mais de 9 horas para fazer um aborto caseiro"

Só no grupo onde encontrou apoio, há 59,3 mil mulheres. Medicação foi comprada com médico veterinário.

1 ago 2022 - 05h00
(atualizado às 08h11)
Protesto a favor ao aborto legal em Porto Alegre (RS), em 2017
Protesto a favor ao aborto legal em Porto Alegre (RS), em 2017
Foto: Futura Press

Foram quase nove horas de cólica intensa, muito sangramento e corpo debilitado, uma experiência que Laísa* descreveu como “um inferno”.  Aos 28 anos, ela realizou um aborto em casa, sendo amparada pelo companheiro com quem tem um relacionamento estável. Depois do período mais intenso do processo, procurou uma maternidade na cidade onde mora, no sul do País, para se certificar de que não estava com alguma infecção ou hemorragia interna. Com o aborto completo, sentiu-se aliviada por não levar adiante uma gestação que não era desejada, mas mesmo assim foi abordada no hospital como se estivesse de luto. “Ficavam me dizendo ‘eu sinto muito por sua perda’, e por dentro eu só pensava que ter passado por aquilo tudo era um alívio. Eu estava emocionalmente e fisicamente vulnerável, mas não podia demonstrar, tinha que ficar alerta para que não descobrissem que foi um aborto provocado. Eu pude não viver a minha vulnerabilidade de forma completa naquele momento”, detalhou. 

Laísa é um nome fictício. Apesar de contar como foi a experiência de comprar medicação pela internet e fazer um aborto em casa, sem o acompanhamento médico durante o processo, o nome dela foi preservado porque o procedimento no Brasil só não é considerado crime em três situações: quando apresenta risco à vida da mãe, em casos de má formação e estupro.

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A professora decidiu realizar o aborto logo no começo da gestação, em maio. “Eu tenho um relacionamento estável de muitos anos, mas temos muitas responsabilidades. Sou responsável por dois idosos doentes: minha mãe e meu tio, os dois tem um quadro de saúde bem sensível. Minha mãe é cardiopata, meu tio faz hemodiálise duas vezes por semana, não enxerga e quando tem paradas cardíacas em casa, eu que faço massagem até o Samu chegar. Nesse contexto, não íamos dar conta de ter um bebê, que precisa de carinho, atenção, um ambiente de acolhimento”, destacou. Ela então começou a fazer uma pesquisa na internet sobre como abortar. Conheceu um grupo nas redes sociais e comprou a medicação. “Passei por entrevista e tudo. Eu estava de cinco semanas quando comecei o processo. Paguei R$ 700 pelos remédios. Mas tem meninas que chegam a pagar R$ 2 mil, dependendo da idade gestacional. Uma mulher sem condição financeira, simplesmente não consegue pagar”, contou. 

Horas de agonia

O procedimento foi feito quando Laísa estava de 10 semanas de gestação. “Consegui quatro remédios. Eu estava com medo de dar errado e ter um aborto incompleto ou acabar provocando uma má formação no bebê, mas fiz com medo mesmo”. 

A vendedora do medicamento se identificou como técnica de enfermagem e auxiliou Laísa à distância durante todo o processo. “Ela me orientou a levar meu corpo à exaustão para que o abortamento acontecesse de forma completa. Fiquei mais de 24 horas sem poder comer ou beber nada e tinha que fazer exercícios físicos de tempos em tempos Eu tinha que ficar com o corpo debilitado para que o aborto tivesse sucesso. Sangrei por mais de 9 horas. É um procedimento que não quero passar de novo, judia da gente de corpo e mente”. Depois de uma semana, as mulheres são orientadas a procurar um hospital para realizar exames. “É preciso saber se não houve complicação, se o aborto foi completo. Eu tive sorte, mas muitas mulheres não tem. Ficam sangrando muito, com fluxo altíssimo, tem hemorragia interna, calafrios. Os riscos são gigantes”, destacou. No hospital Laísa teve a confirmação de que o aborto aconteceu. “Em muitos casos não há como provar que o aborto não foi espontâneo. Mas o tempo todo a equipe médica te coloca contra a parede. Se você queria muito um filho, fica se sentindo frustada por não ter conseguido. Se você não queria, fica num misto de alívio e culpa por não ter levado a diante. O atendimento é desumano pra mulher, independente da situação”, avalia. 

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Para Laísa, o debate sobre aborto é urgente. “Não legalizar o aborto custa caro pro sistema de saúde que tem que atender as complicações, e custa caro para as mulheres, que pagam com a vida. É muito desonesto e de má fá dizer que uma mulher faz aborto como método contraceptivo. Quem fala isso não tem ideia do que é passar por um aborto”. 

Mulheres encontram nas redes sociais apoio para realização de abortos considerados ilegais no País
Foto: Andrii Zorii

Lucro e ativismo

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a combinação de dois remédios para a realização de um aborto seguro: mifepristona e o misoprostol. O primeiro não é regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária e, por isso, não é comercializado no Brasil. Já o misoprostol não pode ser vendido em farmácias e sua venda a estabelecimentos de saúde é feito sob controle rigoroso. O medicamento é usado para conduzir abortos legais e induções de parto, por exemplo. 

“O remédio que usei (misoprostrol) veio de um médico veterinário da minha cidade. Tem muita gente ganhando dinheiro no Brasil com o aborto inseguro. Mas por mais que haja lucro, eu acho que é um trabalho necessário. Eu não sei o que eu faria se não fosse  a moça que me vendeu o remédio e me ensinou como usá-lo. Não sei o que seria de mim”.

Manifestação de luta pela legalização do aborto na ALERJ, no Rio de Janeiro (RJ), em 2020
Foto: Futura Press

Riscos

A médica e ativista Débora Anhaia de Campos também defende que o tema seja discutido abertamente no País, para levar mais segurança às mulheres. “O relato de maior gravidade que já ouvi foi de uma moça que com cinco meses de gestação, usou um medicamento injetado. Era um abortivo de uso veterinário que uma pessoa que vende aplicou nela. Ela teve infecção uterina, abortou e ficou mais de uma semana internada. Ela sofreu muito, teve muita dor e quase morreu de infecção generalizada. O que acaba acontecendo é que as mulheres são orientadas de forma equivocada.  Compram mais remédios do que o necessário, fazem jejum desnecessário, falam pra fazer exercício quando a mulher com dor tem que ficar de repouso, não orientam quais medicações tomar para os efeitos colaterais do abortivo, não orientam a paciente a fazer um ultrassom depois do procedimento e nem sobre o risco de nova gravidez indesejada, enfim, uma série de protocolos que acabam também criminalizando as mulheres pra além do sofrimento que o procedimento já provoca”, destacou.

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Fonte: Redação Nós
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