Aos 49 anos, a vida de Maria Eduarda, ou Duda, como ela se apresenta, mudou. Ela entendeu que os conflitos que vivia desde os sete ou oito anos de idade tinham uma explicação: Duda é uma mulher trans, lésbica, que, hoje, tem 55 anos.
“Quando eu era criança, rezava todas as noites para que Deus me livrasse da vontade de vestir as roupas da minha irmã, da minha mãe. De não me identificar com o comportamento de outros meninos e por querer ter um físico feminino. Isso sempre me consumiu, fez de mim uma pessoa reclusa.”
Duda conta que o processo de descoberta e conscientização da transgeneridade não é fácil. Foram diversos momentos de incertezas, dúvidas e falta de informação. “Desde as minhas primeiras lembranças, sempre busquei anular minha afinidade com o universo feminino. Nunca consegui entender o que acontecia comigo.”
O objetivo e desejo de Duda sempre foi construir uma família. “Pensei que me casar, ter filhos e uma carreira de sucesso fosse o suficiente para manter tudo controlado e trancado a sete chaves. Guardei um segredo durante décadas. Na minha cabeça, eu jamais seria aceita – e, talvez naquela época, não fosse, mesmo. Era uma época em que a questão das pessoas trans não era conversada em nenhum lugar.”
Os anos foram passando e Duda procurou terapia. “Sempre ouvi falar de transgêneros, mas nunca ia a fundo para entender o que era. Quando descobri que era trans durante as terapias, tudo fez sentido. Todo o sofrimento de décadas foi explicado. Eu me senti compelida a ir em frente com um processo de transição. Era impossível de evitar. Somente quem é transgênero pode entender como isso funciona.”
Acolhimento foi uma surpresa
Criada dentro de um ambiente conservador e religioso, Duda associava o que sentia a vergonha, medo e culpa. Isso refletiu em como ela decidiu contar paras as pessoas sobre o processo de transição. “Não contei pessoalmente o que estava acontecendo comigo para muitas pessoas. Tudo foi feito com bastante planejamento, pensando no pior e no melhor que poderia acontecer. Uma vez que tudo se tornou público, não procurei ninguém. Quis dar a liberdade das pessoas terem vontade ou não de se aproximarem de mim, espontaneamente.”
Duda se surpreendeu, porém, quando sentiu que o acolhimento foi maior do que ela imaginava. “Foi uma surpresa enorme ver pessoas, até então distantes, se aproximando novamente, falando palavras de motivação, que me admiravam pela coragem. Parentes, amigos da empresa onde eu trabalhava, pessoas que eu ia conhecendo...”
A hora de contar para a família
A irmã de Duda foi a primeira pessoa da família a saber o que estava se passando com ela. “Até então, apenas minha esposa sabia. Ela teve uma reação maravilhosa de muito carinho e acolhimento, assim como foi com a minha mãe e com os meus tios mais próximos.”
Mas ainda tinham os dois filhos do relacionamento de 27 anos que ela teve antes da transição. “Com minha filha, me preparei demais. Foram semanas pensando no que falar. Sabia que ela tinha uma mente aberta, mas não podia prever a reação que ela teria, afinal eu era pai dela. Correu tudo bem. Hoje, estamos mais próximas do que eu poderia imaginar em qualquer circunstância da minha vida.”
O filho de Duda tem síndrome de Down. Ela conta que, para ele, foi muito difícil no começo. “Como eu ia explicar o que estava acontecendo? Levamos meu filho para fazer uma sequência de terapias para fazê-lo entender a diversidade que existe no mundo. Pessoas com Down tendem a encarar tudo de forma muito binária e se apegam muito mais a fatos do que a conceitos. Senti uma grande alegria quando um dia a psicóloga me chamou e disse: ‘você e seu filho têm uma imensa conexão de amor, estou impressionada’. Meu filho me chama de Duda, de pai, fala que sou uma mulher, elogia quando me acha bonita e outro dia disse que ia encontrar um namorado para mim. Tive que tirar essa ideia bem rapidinho da cabeça dele.”
Fim do casamento e nascimento de Duda
Apesar de Duda ser uma mulher trans lésbica, sua esposa decidiu se separar. Essa não era a vontade de Duda, mas ela entendeu que não dependia apenas dela. “Não tenho o que fazer a não ser respeitá-la por essa decisão. Por um tempo tentei reconquistá-la, como se estivesse buscando pedi-la em namoro novamente. Percebi que não era justo fazer isso. Lamento muito não poder mais estar ao lado dela. Minha ex-esposa é a mãe dos meus filhos, foi a pessoa que escolhi para casar e com quem estive durante 27 anos e estaria por muito mais outros anos. Continuo confiando muito nela e tendo muita admiração pela pessoa que ela é."
Liberdade: presente e futuro
Hoje, Duda tem sua própria marca ao lado da filha, um sonho realizado para as duas. "Fiz vários cursos em joalheria, cerâmica e caleidoscópios no exterior e no Brasil. Hoje, sou empreendedora e artista plástica. Tenho uma empresa com a minha filha, a Mina @minaartbr”. Tudo na vida de Duda foi redesenhado e ela acredita que sua missão é mostrar que uma pessoa trans pode ser o que quiser na vida. “Ter família, receber apoio de uma, estudar e não sofrer bullying nas escolas, ter uma profissão sem precisar esconder como premissa que ela é uma pessoa transgênero”.
Duda conta que se sente livre para fazer o que mais gosta sem medo de ser quem é. “Gosto de caminhar pelas ruas da cidade, parar em algum lugar, tomar um café e observar o movimento em volta. Gosto de dirigir em uma estrada durante o dia sem ter pressa de chegar ao meu destino. Adoro estar ao lado dos meus filhos e visitar minha mãe uma vez por semana para bater um papo sem esquecer de tomar mais um cafezinho.”