Paloma é uma mulher trans. Trabalha com lavradora e vive com seu namorado no agreste pernambucano. Católica praticante, ela acalenta o sonho de casar na igreja, de branco, véu e grinalda. A negação do padre acaba desencadeando um enredo de violências, traições, preconceitos e toda sorte de dificuldades.
Esta é a premissa do novo filme do cineasta brasileiro Marcelo Gomes, Paloma, que estreou na semana passada no Festival de Cinema de Munique, na Alemanha, e deve chegar aos cinemas brasileiros no segundo semestre.
A história é fortemente baseada em uma personagem real: anos atrás, Gomes leu no jornal uma notícia de uma mulher transgênero que morava em uma pequena cidade do interior e sonhava com um casamento religioso tradicional.
"Paloma é um drama romântico, tem uma história simples de amor, mas também de grande complexidade. É um universo, uma geografia muito machista", comenta o cineasta, que tem no currículo filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus e Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar.
Gomes afirma que o filme mostra a coragem da Paloma para realizar seus sonhos. "Existe também o desejo de mostrar que todos nós deveríamos nos integrar, nos tornar livres, sendo tratados como iguais e vivendo juntos, sem violências", acrescenta.
"À medida que a gente reconhece e aceita todos os tipos de pessoas, seja qual for a decisão que a pessoa tomou sobre o jeito de levar a vida, a gente vai quebrar esse processo de violência, de ódio, que existe na sociedade brasileira. Daí então todos vamos começar a viver melhor, a respeitar melhor, a se mover melhor. Eu acho que essa é a mensagem do filme", afirma em entrevista à DW Brasil.
DW Brasil: O que tem de real na Paloma do seu filme?
Marcelo Gomes: O ato de Paloma, a personagem, é real. Ela deseja ter um casamento vestido de branco, véu e grinalda. Durante o processo de execução do roteiro, eu estava fazendo documentários na região do agreste, sertão de Pernambuco, onde a gente depois reviu a cidade da Paloma, onde a Paloma real vivia. Conversei com muitas mulheres trans, e as mulheres trans me ajudaram, com suas histórias, a construir uma Paloma que é a junção de experiências de mulheres trans com as quais tive contato lá no agreste pernambucano, inclusive a Paloma real.
Ao retratar uma transexual casada, que vive com o namorado em pleno interior do Nordeste brasileiro, há algumas camadas envolvidas importantes de destacar neste Brasil de 2022. A primeira questão é justamente a transfobia — o Brasil é líder mundial em violência contra trans, e Pernambuco é dos estados que estão no topo da estatística. Nesse sentido, qual a importância social e política de um filme como este?
Paloma é uma experiência universal. É um filme sobre o amor. E as circunstâncias de um amor. E o crer ou não crer nesse amor que também tem uma relação com o crer e o não crer nessa fé. A personagem tem uma personalidade dócil, uma enorme força de trabalho, numa sociedade capitalista que funciona da seguinte forma: o corpo dela é apto para trabalhar, mas inapto para sonhar. E eu acho que esse é o grande elemento do filme. Paloma está procurando seu sonho. Então não se faz o julgamento desse sonho, mas sim [se mostra] o desejo dela de realizar esse sonho numa sociedade conservadora e machista.
Outra questão tem a ver com essa vontade da personagem de se casar na Igreja. Embora a postura da própria Igreja Católica tenha mudado em parte, com um discurso um pouco mais de acolhimento do que de exclusão, é nítido que está muito longe do dia em que o Vaticano vai autorizar um casamento que não seja heteronormativo. Qual é a mensagem social que podemos extrair de alguém que, como a personagem do seu filme, mesmo não sendo plenamente aceita pela religião, quer viver os rituais em sua plenitude?
As pessoas trans querem liberdade de se movimentar no espaço público, seja numa pequena cidade do interior pernambucano, seja numa cidade grande. Sem sofrer violência. É um direito legítimo de toda cidadã. E as instituições sociais e religiosas deveriam ter a capacidade de apoiar todas as pessoas para que possa realizar seus desejos, criar relações que sejam proveitosas, independentemente de quem são. Acho que é isso que o filme quer trazer e mensagem, numa sociedade que se recusa a aceitar o outro com suas diferenças, promove o ódio e a violência. E à medida que a gente reconhece e aceita todos os tipos de pessoas, seja qual for a decisão que a pessoa tomou sobre o jeito de levar a vida, a gente vai quebrar esse processo de violência, de ódio, que existe na sociedade brasileira. Daí então todos vamos começar a viver melhor, a respeitar melhor, a se mover melhor. Eu acho que essa é a mensagem do filme, né? Mostrar a coragem da Paloma para realizar seus sonhos. Na verdade existe também o desejo de mostrar que todos nós deveríamos nos integrar, nos tornar livres, sendo tratados como iguais e vivendo juntos, sem violências. Essa é a mensagem.
Uma terceira camada importante ao analisarmos o filme diz respeito ao cenário interiorano nordestino. Nesse ambiente, o machismo ainda tende a ser maior — e, consequentemente, é mais difícil a aceitação de um relacionamento fora dos padrões convencionais. Situar Paloma nesse contexto foi uma escolha ou um acaso? A vida de Paloma é mais difícil por causa do meio onde ela vive?
O filme Paloma é um drama romântico, tem uma história simples de amor, mas também de grande complexidade. É um universo, uma geografia muito machista. É um universo do interior do Nordeste, mas na cidade grande também existe muita violência… Nas cidades grandes existe também uma parte da população que aceita mais as minorias, as minorias LGBTQIA+, mas também existem preconceitos, principalmente os preconceitos que foram fomentados por este governo [do presidente Jair Bolsonaro], que exacerbou um sentimento de ódio e intolerância que já existia.
Em um ano de 2022 marcado por embates ideológicos bastante acirrados entre conservadores e progressistas, qual sua expectativa para quando o filme estrear no Brasil? Teme algum tipo de represália?
A gente está aqui para receber de peito aberto se houver alguma represália de uma parte da população conservadora. Estamos aqui para discutir com total tranquilidade. E esperamos que esse filme tenha espaço para, de uma forma ou de outra, mostrar que só seremos uma sociedade mais igualitária, menos violenta, mais humana, se todos formos livres para realizar nossos sonhos, se todos formos tratados como iguais.