STF julga marco temporal: o que diz líder de povo indígena que pode perder terras

A Terra Indígena Limão Verde, em Mato Grosso do Sul, foi homologada em 2003. Mas, uma década depois, a demarcação foi anulada pelo STF com base na tese jurídica do 'marco temporal'. Caso pode voltar a ser julgado nesta quarta.

7 jun 2023 - 05h36
(atualizado às 07h35)
Grupo protesta contra marco temporal na Esplanada dos Ministérios, em Brasília
Grupo protesta contra marco temporal na Esplanada dos Ministérios, em Brasília
Foto: Andre Borges/EPA-EFE/REX/Shutterstock / BBC News Brasil

A Terra Indígena (TI) Limão Verde, baseada em Aquidauana (MS), chegou a um estágio que muitos povos originários não conseguiram atingir até hoje: em 2003, teve sua demarcação homologada.

Mas o status durou pouco mais de uma década: no final de 2014, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anulou o decreto de homologação da terra indígena, respondendo a um recurso apresentado pelo proprietário de uma fazenda vizinha que disputa a área com os indígenas e que havia sido derrotado em instâncias inferiores.

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Porém, depois da decisão da turma, a batalha jurídica ganhou um novo capítulo em 2018: o então ministro Celso de Mello decidiu, monocraticamente, colocar o caso para julgamento do plenário do STF, após recurso do Ministério Público Federal (MPF) questionando a decisão de 2014. O ministro considerou que o STF não tinha uma posição consolidada sobre a tese do chamado "marco temporal".

Nesta quarta-feira, 7, o destino da aldeia Limão Verde, que faz parte do povo terena, pode ter uma definição. Além do seu próprio caso estar na pauta de julgamento do dia, há também outro processo previsto que pode atingi-lo, porque tem repercussão geral — ou seja, a decisão para um caso particular, relativo ao povo xokleng, serve como jurisprudência para outros similares.

Moni Terena (na foto, agachada à direita) com pessoas da aldeia Limão Verde e apoiadores em Brasília
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Ambos casos pautados giram em torno da tese do marco temporal: a interpretação jurídica de que terras indígenas posteriores à promulgação da Constituição de 1988 só podem ser demarcadas se conseguirem comprovar que já ocupavam esses locais na data (5 de outubro de 1988). O plenário do STF vai julgar se essa interpretação é compatível com os direitos constitucionais.

Além do Supremo, o marco temporal está em debate também no Congresso. Em 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que estabelece o marco temporal. O texto ainda precisa passar pelo Senado, mas parlamentares favoráveis à tese temem que o STF possa antes disso jogar por terra o marco temporal — embora, até agora, apenas dois ministros tenham votado no caso xokleng, aquele que tem repercussão geral (Nunes Marques, que foi favorável ao marco temporal; e Edson Fachin, contrário).

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A homologação da Limão Verde foi anulada com base no marco temporal. Moni Terena, líder da aldeia Limão Verde, afirmou à BBC News Brasil que a anulação foi um "baque" para a comunidade.

"A gente não esperava que pudesse ser mexida essa ação [de homologação]. Para a gente, foi um baque, achávamos que já estava tudo certo", disse a líder em entrevista por chamada de vídeo.

"Desde 2014, isso tirou a nossa paz. É uma coisa que nos atormenta, é uma tese que traz uma preocupação a respeito do extermínio dos povos indígenas, não só da nossa comunidade", completou, referindo-se à tese do marco temporal.

'A gente fica preocupada e, ao mesmo tempo, esperançosa', diz Moni Terena sobre julgamento no STF
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Moni fala em "extermínio" por argumentar que, sem terras suficientes e protegidas, os povos originários ficariam sem meios de sobrevivência e mais sujeitos a ameaças externas.

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"A Limão Verde está com uma preocupação e, ao mesmo tempo, com uma esperança muito grande de que isso seja logo definido [no STF]. Por exemplo, se algum ministro pedir vista, aí há outra espera. A gente gostaria que o julgamento fosse definitivo. Então a gente fica preocupada e, ao mesmo tempo, esperançosa."

A TI Limão Verde, conforme a homologação de 2003, tem aproximadamente 5 mil hectares. Se o marco temporal for confirmado, possivelmente a comunidade ficaria com menos da metade, cerca de 2 mil hectares de terra — que foram reservadas pelo governo do Mato Grosso (o Mato Grosso do Sul ainda não tinha sido criado) em 1928, portanto bem antes da Constituição de 1988.

A disputa judicial pelas terras foi iniciada pelo proprietário da Fazenda Santa Bárbara, o advogado Tales Oscar Castelo Branco. No processo, o proprietário argumenta que a terra indígena homologada se sobrepõe à fazenda indevidamente, pois a área não seria tradicionalmente ocupada por indígenas.

"O Cel. João de Almeida Castro (primeiro proprietário da gleba em litígio) apossou-se no final do século 19, posse regularizada em 1914, graças a título oneroso a ele outorgado pelo então Estado de Mato Grosso, e que, de lá até hoje, sempre foram transferidas regularmente de proprietário a proprietário, sem contestação de quem quer que seja", diz um trecho da petição inicial, assinada por Castelo Branco e mais três advogados.

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O decreto estadual que reservou as terras em 1928 não cita nominalmente os indígenas, mas há um consenso de que a iniciativa os favoreceu e consolidou sua presença ali. A petição de Castelo Branco reconhece isso, ao afirmar: "A Aldeia Limão Verde, formada por volta de 1920, já se encontrava delimitada e reconhecida como território indígena, e contava com quase 2.000 ha (dois mil hectares), quando a Funai, em 1996, resolveu expandi-la por meio de processo administrativo de demarcação no qual englobou a Fazenda Santa Bárbara."

Acionando a tese do marco temporal, a defesa do proprietário da Fazenda Santa Bárbara afirmou que nunca foi plenamente comprovada nem a ocupação da área em 1988 e nem o chamado "renitente esbulho" — que é uma outra interpretação, a qual aceita como motivo legítimo para a reivindicação de terras a comprovação que os indígenas estavam lutando por elas em 1988, mesmo que não tivessem conseguido ocupar essas áreas.

Segundo a defesa de Tales Oscar Castelo Branco, o "renitente esbulho" comprovado no caso de Limão Verde seria insuficiente e formalizado "apenas por dois índios terena".

Após passar pela 2ª turma, caso envolvendo a indígenas e proprietário de fazenda no MS deve ser julgado pelo plenário do STF
Foto: Divulgação/STF / BBC News Brasil

As evidências de renitente esbulho neste caso foram caracterizadas pela defesa como "súplicas genéricas, não direcionadas a quem quer que fosse, sem qualquer menção, direta ou indireta, à Fazenda Santa Bárbara, nas quais pleiteavam simplesmente a expansão da Aldeia Limão Verde".

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A BBC News Brasil tentou contato com Castelo Branco por meio de seu escritório em São Paulo, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

Moni Terena, por sua vez, afirma que, nos últimos anos, teriam sido coletadas várias provas da ocupação e das reivindicações do seu povo pela terra — por exemplo, documentos que estavam sob a guarda de anciões.

De acordo com a líder indígena, a área que está em disputa judicial tem sido usada apenas para a plantação de mandioca, feijão e milho, mas não para moradia, por medo de ameaças e pela falta de infraestrutura. O projeto de instalar ali uma caixa d'água, por exemplo, não foi à frente por conta da incerteza com o processo judicial, afirma ela.

Ainda segundo a líder, representantes do governo federal teriam afirmado à comunidade que eles ainda poderiam usufruir da terra, por exemplo com plantações, mesmo com a anulação da demarcação no STF.

Moni Terena argumenta que a confirmação da área da terra indígena em 5 mil hectares é necessária para suprir as demandas por moradia e por áreas para agricultura familiar.

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"Nossa aldeia tem em torno de 900 famílias e já está muito pequena", diz Moni, nascida em Limão Verde e neta de Amâncio Gabriel, que foi cacique da aldeia.

Caso Raposa Serra do Sol

De acordo com relato do advogado e pesquisador indígena Luiz Henrique Eloy Amado ao Instituto Socioambiental, a Terra Indígena Limão Verde tem forte significado para os terena, porque foi local de refúgio para eles durante a Guerra do Paraguai (1864-1870).

Mas, depois da guerra, intensificou-se o processo de colonização da região de Aquidauana, com a constituição de vilas e propriedades privadas.

Mesmo após a multiplicação de propriedades na região, os indígenas terena continuaram trabalhando nas fazendas, acrescentou Eloy Amado.

Defensores dos povos originários e pesquisadores afirmam que os indígenas de Limão Verde foram expulsos das áreas hoje em disputa em 1953, sendo impedidos de ocupá-las para habitação, mas continuaram praticando a caça e a coleta ali.

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Com isso, argumentam que esse cenário impossibilita a comprovação de ocupação da terra em 1988, como exigiria o marco temporal, pois os indígenas foram impedidos de viver ali décadas antes; e, ao mesmo tempo, demonstra como esses locais continuaram sendo fundamentais para sobrevivência do povo, que continuou realizando ali atividades como a caça.

Em foto de 2009, indígenas protestam em frente ao STF, no período do julgamento sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A tese do marco temporal, que pode afetar a comunidade no Mato Grosso do Sul e várias outras, foi impulsionada em um julgamento de 2009 no STF, sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Na ocasião, foi discutido o caso em particular — mas, depois, o "marco temporal" foi incorporado como pauta pela bancada ruralista no Congresso e aplicada em diversas decisões judiciais pelo Brasil.

Em nota enviada à reportagem, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que defende a tese do marco temporal, afirmou que "não é contrária aos direitos dos povos originários".

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"[A FPA] Defende o direito de propriedade e a segurança jurídica, quando um direito não pode se sobrepor aos de brasileiros que pagaram por sua terra e são retirados sem nenhum tipo de indenização", afirmou a entidade.

A BBC News Brasil também pediu posicionamento do relator do projeto de lei que estabelece o marco temporal e foi aprovado na Câmara, o deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), mas não recebeu retorno até a publicação da reportagem.

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