“Angela Davis diz que ‘quando a mulher negra se movimenta, a estrutura da sociedade se movimenta com ela’. Não é mentira. Falam que é uma frase batida, mas não. É muito real. Sei que eu puxo outras e outras e outras e outras”, reflete a apresentadora Kenya Sade, 30, sobre ser uma referência negra na TV e os espaços que tem ocupado.
A comunicadora, que é uma das apresentadoras do The Masked Singer Brasil, alçou voo na Globo ao cobrir festivais como o Rock In Rio e o Lollapalooza, com maestria, no Multishow. O talento dela, no entanto, vinha se desenvolvendo muito antes, na plataforma Trace Brasil – especializada em cultura afrourbana. Ali, assumiu que a TV também era seu lugar, sendo uma mulher preta retinta e LGBTQIA+.
“O pós pandemia [da Covid-19] e, principalmente, depois de George Floyd, o mundo se viu obrigado a questionar sobre a diversidade nos espaços. Acho que o Brasil foi um país que acordou muito depois disso”, diz Kenya, em entrevista ao Terra NÓS.
Para ela, é preciso “mais diversidade nas telas, na frente e por trás das câmeras”. E concorda que sua chegada em emissoras como a Globo corrobora com esse momento de transformação na mídia brasileira.
Mulheres pretas confiantes
Um mecanismo do racismo estrutural, ainda vivemos em uma sociedade que tenta minar a autoestima de mulheres negras, em suas diferentes áreas. Por isso que a trajetória de Kenya, uma personalidade que traduz inspiração e confiança, é transformadora.
“Porque nos foi ensinado que esse lugar não era nosso. Sempre nos foi contado que ambição era uma coisa negativa, quando, na verdade, é você querer mais”, analisa.
A apresentadora conta que é uma pessoa espiritualizada, que faz terapia e entende que esses cuidados são necessários para não se sabotar diante das desigualdades.
“Hoje, vivo em um Brasil que me permite estar onde eu estou, mas é uma construção. Sinto que a gente tem que estar muito preparada, três vezes mais preparada”, confessa.
“Sou uma mulher preta que fala inglês fluente, espanhol, tive uma formação muito boa. Mas sabemos que essa não é a realidade nem da metade das mulheres pretas no Brasil. De toda forma, acredito nessa caminhada e sei que outras de nós chegarão lá [na TV e outros espaços de destaque e poder], já estão chegando, na verdade. E cada vez mais.”
“A gente tem a Maju Coutinho, Cris Guterres, tivemos Glória Maria. Temos tantas outras. E não teremos só uma Kenya.”
Letramento racial
Além disso, Kenya fala que a confiança em seu potencial vem do fato de ser uma mulher letrada racialmente. “O movimento negro fez um trabalho para que a gente chegasse onde estamos hoje.”
Ela explica que o incentivo para esse letramento veio da mãe, Regina, que é economista. “Fui atrás porque eu tinha essa necessidade de descobrir a minha história, ancestralidade, principalmente sendo uma mulher preta brasileira, mas também que tem uma origem angolana por conta do meu pai”, relembra.
Entre as autoras feministas negras que leu – e recomenda – ela cita Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo e Sueli Carneiro.
Um divisor de águas nessa trajetória também foi uma viagem ao Reino Unido e à França. “Onde tive contato com outras mulheres pretas da diáspora. Isso me transformou. Parece que eu me redescobri enquanto mulher negra, me empoderei para chegar no Brasil com toda essa força e confiança”, relata.
Referências femininas
A jornalista reflete ainda que sua batalha por representatividade é uma luta coletiva. “Estou acompanhada de outras mulheres que também abriram caminhos”, complementa. E uma delas é a atriz Taís Araújo.
“Ela é uma grande referência para mim. Taís é essa referência de beleza, de excelência de entrega e eu sinto que estou virando também esse símbolo, mas com os pés no chão, para não subir à cabeça. É uma longa trajetória e eu não ando sozinha.”
Outra grande referência para Kenya é a mãe. Ela destaca que Regina apostou todas as fichas nela. “Fui uma criança que pode sonhar. Em nenhum momento ela falava que eu não poderia ser alguma coisa.”
“Acho que ela [minha mãe] já sabia que a trajetória não iria ser fácil. Sou uma mulher preta no Brasil, e LGBTQIA+. Por conta da minha criação, sou uma mulher muito mais confiante.”
Kenya é casada com a artista visual Thamyres Donadio. Elas começaram o relacionamento em 2019 e moram juntas há pelo menos dois anos. “Levo isso com muita naturalidade. Inclusive, falo da minha esposa o tempo inteiro, é uma parte de mim, é meu grande amor.”
“Falo disso abertamente, sobre ser uma mulher lésbica. Firmar esse nosso relacionamento é, de certa forma, fazer política e dar visibilidade a outras mulheres LGBTQIA+. Além disso, tem muitas pessoas que não se aceitam, é uma maneira de mostrar que é possível estar nos espaços sendo quem você é”, finaliza.