RIO - A Anistia Internacional lançou na noite desta quarta-feira, 27, o documentário "Descontrole: o Ministério Público no centro das atenções", em que faz duras críticas à instituição por considerá-la omissa diante de graves violações de direitos humanos atribuídas à Polícia. Dados da Rede de Observatórios de Segurança revelam que um jovem negro é morto por policiais a cada quatro horas em seis Estados brasileiros. E ainda que 70% das chacinas registradas no Rio de Janeiro são de autoria de agentes da corporação.
Em entrevista ao Estadão, a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, lembra que, de acordo com a Constituição de 1988, o MP tem o dever de garantir o controle externo das atividades policiais, que devem ser condizentes com os direitos humanos. Em 2017, o Estado brasileiro foi condenado na Corte Interamericana pelo arquivamento da investigação das chacinas de Nova Brasília, em 1994 e 1995, que resultaram em 26 mortes. Ninguém foi condenado pelas mortes.
"Na nossa compreensão, pela análise dos dados disponíveis e apesar do cenário trágico, o MP tem estado muito apático, agindo menos do que a lei determina, menos do que as cortes internacionais estabelecem", afirma Werneck. "O papel dos procuradores não é ficar sentado no ar condicionado esperando o relatório do delegado. Eles têm ferramentas para fazer com que policiais cumpram seu papel, para que esse ciclo de impunidade seja rompido."
A diretora da Anistia Internacional cobra também mais transparência da instituição. Defende que o MP deve incluir parentes de vítimas nas investigações e prestar contas à sociedade sobre seu trabalho.
O MP não quis se pronunciar sobre o documentário porque afirmou desconhecer o seu conteúdo.
A Polícia Militar, em nota, garante que o objetivo central de seus protocolos e treinamentos é a preservação da vida. O texto lembra ainda que a "maioria do contingente vem das classes de base da sociedade, incluindo as comunidades carentes, o que torna nossos policiais parte do contexto estrutural, histórico e social em que atuam". E ainda que a corporação "foi uma das primeiras instituições públicas do País a ser comandada por um negro. Mais da metade de seu efetivo de praças e oficiais é composto por afrodescendentes."
Por que a Anistia Internacional decidiu trazer essa crítica contra o Ministério Público?
Há oito anos, a Anistia Internacional vem chamando atenção para o tema da letalidade policial e da morte de jovens negros, além de dialogar com todas as instituições oferecendo soluções e chamando o MP para a ação. O MP é uma ferramenta criada pela sociedade como um organismo independente de outros poderes, com recursos próprios, estabilidade de emprego e poder de fazer o controle externo da atividade policial.
Na nossa compreensão, pela análise dos dados disponíveis e apesar do cenário trágico, o MP tem estado muito apático, agindo menos do que a lei determina, menos do que as cortes internacionais estabelecem. O papel dos procuradores não é ficar sentado no ar condicionado esperando o relatório do delegado. Eles têm ferramentas para fazer com que policiais cumpram seu papel, para que esse ciclo de impunidade seja rompido. Não estamos apenas fazendo uma crítica, mas chamando o MP para fazer uma parceria com a população que quer o fim da brutalidade policial.
Na análise de vocês, por que o MP seria tão apático?
Essa é a grande pergunta. Provavelmente há várias respostas. O fato é que tem gente que só descobre que existe o MP no curso da luta por justiça. E, muitas vezes, esse encontro é traumático. O MP tem o dever de ser público, de representar sociedade, não pode ser tão desconhecido assim. A determinação da corte interamericana é que famílias e sociedade participem da investigação, contribuam com os processos. A cada quatro horas, em seis Estados brasileiros, um jovem negro é morto pela polícia. Por que o MP não faz nada?
Ao lançar essa crítica ao MP, a Anistia não estaria desviando o foco de quem seria o principal responsável pela situação, a polícia?
Não. E por várias razões. A Anistia Internacional e muitas outras organizações parceiras, além da própria sociedade, apontam sistematicamente os desvios da polícia, o racismo e os homicídios. Mas além da polícia, o MP também não está cumprindo suas obrigações. Não é a polícia sozinha que produz essa situação e que vai resolver o problema, ela é parte da solução. O MP, por dever constitucional, também precisa ser parte da solução.
Qual deveria ser o papel do MP em um mundo ideal?
Não vou nem dizer ideal, mas nos termos da lei. O MP tem o poder de fiscalização dos poderes do Estado para garantir os nossos direitos. No caso da atividade policial, o MP tem o dever de antecipar incompetências, por exemplo, contribuir para que sejam sanadas; ajudar na elaboração de protocolos, em treinamentos, enfim, salvar vidas. Diante de violações de direitos humanos já tão conhecidas, como invasão de casas, ameaças, chantagens, estupros, o MP deveria se antecipar para impedir tais coisas de acontecerem.
É preciso que se antecipe na supervisão, fiscalização e controle externo da polícia. E também que não trate homicídios cometidos por policiais como erros individuais. Não é. Toda a cadeia de comando precisa ser responsabilizada. É preciso que a população conheça e recorra ao MP. Se o MP estiver do nosso lado, muita coisa pode ser diferente.
Em 2017 o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos pela falta de justiça às vítimas das chacinas da Favela Nova Brasília em 1994 e 1995. Desde então o arquivamento de outras chacinas poderia ter sido evitado com uma ação mais contundente do MP? Como a própria Corte Interamericana pediu?
Sim, claro. Quantos casos são arquivados por "falta de provas"? O MP tem o poder de investigar quando considera que a polícia não está cumprindo seu papel adequadamente. Muitas chacinas foram arquivadas. Nos casos de Nova Brasília, ninguém até hoje foi responsabilizado. E essa foi uma chacina ocorrida em meados dos anos 90. Já está fazendo um ano da chacina do Jacarezinho, uma das maiores do Rio de Janeiro, em que 29 pessoas foram mortas. E ontem (terça-feira, 26) mesmo, na mesma comunidade, Jhonatan (Ribeiro de Lima) tomou um tiro no peito e morreu. Tem vídeos de policiais armados, gritando "inferno" e gargalhando, claramente ameaçando a população. Não podemos ter todo dia um menino morto pela Polícia.
A polícia não tem direito de matar ninguém. Os protocolos internacionais falam em uso progressivo da força. A polícia alega que Jhonatan estava vendendo drogas e tinha uma arma falsa. Não estava ameaçando ninguém. Isso foi dito ao MP, meu Deus do céu. É uma flagrante ilegalidade. Temos uma das polícias que mais matam. E chegamos a isso com o silêncio do MP.
No documentário, a irmã de um jovem baleado pela polícia diz uma frase muito impactante: "A polícia mata e o MP enterra". Você concorda com isso?
Essa mulher lidera uma rede de familiares de vítimas da violência do Estado, ela vê o tempo todo o silêncio do MP, que se recusa a cumprir o seu papel. Mas queria chamar atenção para outro aspecto dessa fala, a esperança. Essas pessoas já perderam o que tinham para perder, nada vai trazer de volta seus familiares, mas estão ali dispostas a contribuir para que outras pessoas não passem pelo mesmo. Então há uma dimensão crítica, mas também uma outra, muito generosa.
Na investigação de muitos crimes, parentes das vítimas reclamam muito de não receberem informações do MP. Como a Anistia vê essa situação?
O MP deveria lembrar de seus deveres públicos que estão no próprio nome da instituição. O MP nasceu forte, tem um orçamento adequado, apoio de gente especializada, recursos tecnológicos e estabilidade profissional. A Constituição de 1988 deu ao MP as condições de fazer o controle externo da Polícia e garantir o cumprimento da lei. O sigilo da investigação é algo necessário, mas isso não tem nada a ver com prestar contas, com o dever de informar, com a transparência das informações. Não só aos parentes das vítimas, mas a toda a sociedade.
A decisão da Corte Interamericana diz que os parentes das vítimas devem participar dos processos; não se pode pressupor que eles vão prejudicar o sigilo. A família é a parte mais interessada em que tudo corra adequadamente. E a sociedade tem o direito de ser informada com transparência.