Um ano após a emergência em saúde decretada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a reserva Yanomami, na Amazônia, sofre com novas investidas do garimpo ilegal, a violência e a malária. Lideranças indígenas também reclamam de problemas nas operações de combate ao crimes ambientais e ineficiência do poder público na entrega de cestas básicas e garantir a segurança no local.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) fala em estrutura aquém do necessário e dificuldade de atuação diante da atuação de bandidos na unidade, que tem cerca de 9,6 milhões de hectares no Amazonas e em Roraima, e faz fronteira com a Venezuela.
A crise se agrava pela paralisação de funcionários do Ibama, que protestam por melhores salários e condições de trabalho. Uma parte dos servidores abandonou as atividades de campo no início deste ano.
No ano passado, 308 indígenas morreram no território, número apenas 10% menor do que os 343 vitimados em 2022. A exposição à criminalidade ameaça o trabalho de profissionais de saúde que atendem na região e impede a abertura de postos de saúde, segundo o próprio governo federal.
“Sentimos que o governo não articulou como deveria e o que está sendo feito não resolve a (situação da) população Yanomami, não resolve as mortes, desnutrição, malária e estrutura dos postos de saúde”, afirma Dário Kopenawa, de 39 anos, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami.
Segundo ele, as operações contra o garimpo ilegal foram praticamente paralisadas na região nos últimos meses e a terra continuou a sofrer os danos causados por criminosos mesmo sob o decreto de emergência em saúde, que completa um ano no próximo sábado, 20.
A crise na maior reserva indígena do País vinha sendo denunciada por ativistas ao longo da gestão Jair Bolsonaro (PL) e na pandemia chegou a ser alvo de ação no Supremo Tribunal Federal (STF).
Em janeiro, após a visita ao território, Lula criou força-tarefa, com atendimentos médicos, fornecimento de água e alimentos, e retirada de garimpeiros ilegais do território. As operações de desintrusão chegaram a expulsar cerca de 80% dos garimpeiros da região, segundo dados do governo.
A gestão Lula não informou, porém, quantos criminosos retornaram ao local. Na última terça-feira, 16, a Polícia Federal realizou nova ofensiva contra garimpeiros na área Yanomami.
A PF destruiu maquinários utilizados pelos garimpeiros e apreendeu armas, munições e outros equipamentos. O Estadão questionou a PF sobre a atuação na região, mas não obteve resposta.
O Ibama afirma que houve redução de 85% das áreas para mineração ilegal na terra Yanomami de fevereiro a dezembro de 2023 ante o ano anterior, fruto de cerca de 310 ações ambientais feitas pelo órgão.
Nesse período, o instituto informou ao Estadão que os fiscais do Ibama foram atacados a tiros pelo menos dez vezes. Mais de 6 mil hectares foram embargados pela fiscalização, 34 aeronaves foram apreendidas ou destruídas, assim como 362 acampamentos garimpeiros.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também relata os prejuízos da atuação na área diante dos riscos. Ao Estadão, o órgão afirma que a situação “ainda é grave e diz atuar de maneira constante no território mesmo com capacidade funcional abaixo de 30% do total.
“Entretanto, tais ações ficam comprometidas sem a segurança no interior da terra indígena, que deve ser uma constante para os indígenas e os servidores da Funai, que são os representantes do Estado brasileiro que ficam permanentemente na TI Yanomami, e acabam ficando vulneráveis sem as forças de segurança”, diz a nota.
Servidores da Funai e lideranças indígenas têm se queixado de lentidão e insuficiência no apoio dado pelas Forças Armadas na garantia das operações. Para Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima, falta estrutura para resistir às investidas de “organizações criminosas que estão altamente armadas, articuladas e mobilizadas”.
O Estadão questionou o Exército sobre o tema, mas não obteve resposta. O Ministério da Defesa afirmou que, além de atuar nas ações de combate a crimes transfroteiriços e de garimpo ilegal, as Forças Armadas entregaram 36,6 mil cestas de alimentos aos Yanomamis. A pasta disse ainda que a partir desta quinta-feira, 25, entregarão mais 15 mil cestas.
No total, incluindo as cestas distribuídas pela Defesa, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome informou à reportagem que foram enviadas cerca de 59 mil cestas básicas à região, onde a desnutrição é um dos principais problemas. No ano passado, 29 Yanomamis morreram por desnutrição, número menor que o registrado em 2022, quando 44 foram vitimados.
Além de gerar contaminação de águas e alimentos, os poços criados pela atividade garimpeira gera criadouros de mosquitos transmissores da malária, uma das principais causas de morte na região.
No último ano, foram realizados cerca de 140 mil testes de malária. Segundo dados do governo, no entanto, a quantidade de mortes em decorrência de doenças causadas por protozoários, que é o caso da malária, aumentou. No ano passado foram 36, enquanto em 2022 foram 17.
O Ministério da Saúde destaca, porém, que as estatísticas estão em atualização e que o processo de verificação se tornou mais complexo devido à “precarização dos sistemas de notificação e vigilância após anos de abandono e desmonte da saúde indígena pelo governo passado”.
“O garimpo contaminou igarapés, rios, peixes, um alimento vital para o povo Yanomami, e também afugentou a caça. Como são coletores e agricultores tudo vem da floresta, que foi fortemente impactado pela questão do garimpo”, afirma Gilmara Fernandes, coordenadora do CIMI (Conselho Indígena Missionário).
Os garimpeiros ilegais também obstruem o trabalho de médicos e enfermeiros. No último ano o Ministério da Saúde diz ter intensificado a atuação, aumentando em 40% o total de profissionais de saúde no local.
Hoje, 960 agentes atuam na região. Após a força-tarefa, a pasta afirma que reabriu sete polos-base, onde são feitos os atendimentos à população local, que estavam dominados pelo garimpo ilegal.
O governo fracassou, no entanto, na tentativa de liberar todo o território. A pasta informou à reportagem que um polo base continua fechado, o de Kayanaú, por conta das atividades criminosas.
Além disso, outras três unidades, em Auaris, Surucucu e Xitei, funcionam apenas durante o dia devido à insegurança causada pelo garimpo. A Terra Indígena Yanomami tem 68 estabelecimentos de saúde em funcionamento.
“Nos locais onde a assistência médica consegue acessar com segurança, é possível prestar os atendimentos necessários de emergência e de acompanhamento de saúde dos indígenas”, diz o ministério, que também atua em conjunto com as forças de segurança nos locais conflagrados para tentar levar atendimento.
Ministra fala em crise não resolvida, mas destaca esforços
A persistência da calamidade no território Yanomami tem contribuído para reforçar as críticas à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que é alvo inclusive das lideranças indígenas. Ao Estadão, Guajajara admitiu que a situação segue sem solução, mas defendeu a atuação do governo.
“Concordo que em um ano não foi realizado tudo que precisa ser feito para acabar tanto com essa crise no Território Yanomami quanto com outras situações que existem em todo o Brasil. Afinal de contas, há uma grande esperança e expectativa geral nesse ministério”, disse.
“A questão indígena é sempre uma questão de urgência. E no território Yanomami, apesar de a crise não ter sido ainda resolvida em sua totalidade, muitos esforços emergenciais foram realizados ali em diferentes frentes de atuação”, justifica.
A ministra também ponderou as críticas feitas às Forças Armadas. Segundo ela, a complexidade do território, incluindo o difícil acesso, dificulta uma atuação mais eficiente.
“Além das invasões feitas por garimpeiros e facções criminosas que também atuam no garimpo, eles ainda escondem suas bases cruzando a fronteira para a Venezuela, o que dificulta totalmente essa fiscalização e controle pelas Forças Armadas e pelas próprias forças de segurança que atuam no território. Tem muito ainda a ser feito”, analisa.
A Casa Civil afirmou à reportagem que durante o ano passado a Polícia Federal deflagrou 13 operações na Terra Indígena Yanomami, resultando em 114 mandados de busca e apreensão, 175 prisões em flagrante e R$ 589 milhões em bens apreendidos. O órgão afirmou ainda que há 387 investigações estão em andamento. Essas apurações focam nos financiadores do comércio ilegal de ouro.
Relatório que será divulgado esta semana pela Hutukara Associação Yanomami aponta que o garimpo na área Yanomami já levou a uma proporção de mais de 5,4 mil hectares de devastação ambiental só em 2023.
A Justiça Federal em Roraima determinou a criação de um novo cronograma de ações na região. Isso porque, conforme o Ministério Público Federal, a partir do 2º semestre de 2023 houve “retrocesso” das ações mediante o retorno de não indígenas para o local para atividades ilícitas de exploração mineral.
Segundo o MPF, novamente os relatos eram de aliciamento, prostituição, incentivo ao consumo de drogas e de bebidas alcoólicas e até estupro de indígenas por parte dos garimpeiros.
“Tem regiões que eles estão fazendo ramais, ele entram pelos rios, entram por estradas clandestinas, entram por vilas que são próximas, que estão na redondeza do território Yanomami”, relata Gilmara Fernandes, coordenadora do CIMI.
Para 2024, o governo federal anunciou R$ 1,2 bilhão para investimento em ações estruturantes para proteger os yanomami. Será criada uma “Casa de Governo” em Roraima para acompanhar de perto a situação. A estrutura terá representantes da Funai, da PF, e de ministérios como Povos Indígenas, Meio Ambiente, e outros. A visão do governo é que o modelo dará celeridade no combate à criminalidade no local e no apoio à população.
“Em vários pontos há grupos de garimpeiros e madeireiros invasores que estão a serviço de organizações criminosas estruturadas, que atuam em diversas localidades do país, incluindo grandes centros urbanos. Isso dá poderio aos criminosos, que contam com armamento, pessoal, aeronaves, barcos e helicópteros que cruzam a área e dificultam a ação do Estado”, afirma a Casa Civil.
Estado cita dificuldade de diálogo com União; Boa Vista diz ver melhora
A Secretaria de Saúde de Roraima diz que “tem insistido na abertura de diálogo com a gestão da saúde indígena na Sesai para estabelecimento de fluxos de atendimentos à essa população, envolvendo as unidades hospitalares estaduais. porém, as tratativas não têm surtido êxito”.
Diante disso, prossegue a nota, “realizou uma série de mudanças no fluxo nas portas de entrada das unidades especializadas, além de reforçar a estrutura dos blocos destinados ao atendimento desse tipo de paciente, com respeito à cultura indígena e tendo acompanhamento de profissionais especializados e capacitados na comunicação com essa população”.
Já a prefeitura de Boa Vista informou que a capital atende toda a população infantil no âmbito hospitalar do Estado e de países vizinhos, bem como a população indígena. O hospital dispõe de um bloco para atendimento aos povos indígenas, com redário e alimentação adaptados aos seus costumes e tradições. Também tem um intérprete para facilitar a comunicação entre equipe médica e pacientes.
“A secretaria municipal de saúde reforça que se nota uma certa melhora na condição de gravidade que essas crianças chegam ao hospital. Eles estão tendo a oportunidade de receber atendimento imediato com recuperação e prognóstico positivos”, diz a gestão municipal, que destacou o apoio recebido pelo governo federal.