"Tiraram um pedaço de mim", diz mãe que perdeu a guarda da filha por levá-la à umbanda

Residente de Ribeirão das Neves, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Liliane Pinheiro dos Santos não tem o contato diário com a filha, uma adolescente de 14 anos, desde o último dia 20 de maio

14 jun 2022 - 16h54
(atualizado às 18h27)
Imagem mostra dois corpos negros abraçados de costas, sendo um deles de uma praticante da umbanda usando vestes brancas, típicas da religião
Imagem mostra dois corpos negros abraçados de costas, sendo um deles de uma praticante da umbanda usando vestes brancas, típicas da religião
Foto: Imagem: Reprodução / Agência Brasil / Alma Preta

"Estou despedaçada", é o que diz a mãe que perdeu a guarda da filha por levá-la a um ritual da sua religião, a umbanda, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, no município de Ribeirão das Neves. Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, ela conta que desde o último dia 20 de maio que não tem mais a filha, com quem morava, no seu convívio diário. Recentemente, a adolescente, de 14 anos, passou por um abrigo e, hoje, está sob a custódia de uma parente por parte da família do pai. 

A ação aconteceu a partir de um pedido do Ministério Público, através do Juiz da 2ª Vara da Infância e Juventude de Ribeirão das Neves, que decretou o recolhimento da adolescente em um abrigo municipal, sob o argumento de que a mãe, identificada como Liliane Pinheiro dos Santos, violou o direito da filha à liberdade religiosa "(questionando a manifestação da menor por religião/crença distinta da sua), mantendo-se resistente nas abordagens da própria escola e no trabalho do Conselho Tutelar no estudo do caso".

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Segundo a apuração feita pela redação, a adolescente teria passado mal na escola, fruto de um quadro que, eventualmente, apresentava. A jovem teria convulsões frequentes o que, inclusive, motivou a mãe a buscar uma resposta espiritual em uma casa de axé, para ver a melhora da filha. No entanto, os representantes da instituição de ensino, em último episódio convulsivo, afirma que identificou cicatrizes na garota. 

Em seguida, ainda no mesmo dia, a adolescente teria sido abordada por profissionais do Conselho Tutelar da região e, entre os comentários, citou a presença nos rituais junto à mãe, o que, ainda não apontava qualquer relação com o quadro convulsivo que já apresentava. No entanto, para o Conselho, a mãe não estava apta à seguir com a guarda da filha por "violar" a escolha religiosa, sob a justificativa que "até sangue de galinha" a adolescente teria tido contato - algo comum nos rituais de religiões de matriz africana após a emulação animal como forma de obter o "axé" de cura e proteção sob cuidados dos orixás. 

Um boletim de ocorrência registrado chegou a ser registrado pelas conselheiras tutelares, após denúncia da escola em que a jovem estuda. O documento menciona cicatrizes com características bem menos invasivas do que a circuncisão em crianças judias ou muçulmanas e que podem ser identificadas em filhos de santo após o processo chamado de "catulagem", que representa pequenas incisões no corpo sobre a qual se colocarão ervas e outros elementos simbólicos do orixá que rege a cabeça. No mesmo B.O, Liliane ainda é acusada de sequestro e cárcere privado de sua própria filha. 

À Alma Preta Jornalismo, a mãe, Liliane, conta que chegou a comparecer na sede do Conselho, mas denuncia que, apesar do que havia sido dito, da sua presença ser apenas para explicar o que poderia ter acontecido, ela não teve oportunidade de falar e foi negada de comparecer junto a qualquer profissional que pudesse intermediar o diálogo em sua defesa. 

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"Eu sofri e estou sofrendo muito com tudo isso de forma tão repentina, sabe? O que eles fizeram comigo foi caso de racismo mesmo! As conselheiras não conversaram comigo, não vieram à minha casa e passaram a saber de mim qual era a situação em questão. Mesmo comparecendo à sede do Conselho e na delegacia, não tive o direito de falar. Passei um dia inteiro no Conselho. Pela manhã, falaram diversas coisas para mim. À tarde, levaram minha filha", conta.

Liliane ainda revela que, mesmo sendo paciente com toda a movimentação sobre a guarda da filha, em pedido de saber para qual abrigo a adolescente seria encaminhada, o endereço e um telefone de contato, por pouco foi negada. 

"Após passar o dia lá e voltar sem a minha filha, ao questionar onde poderia encontrá-la, o que recebi foi um pedaço de papel com o endereço e telefone de contato, mas dado com muito desaforo. Depois disso, foi só sofrimento. Não tenho mais paz. Semana passada, ainda cheguei a visitá-la, mas, depois disso, não consegui mais saber dela. Mando mensagem, tento ligar, mas não me atendem. Tiraram um pedaço de mim mesmo", desabafa.  

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Segundo os defensores de Liliane, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código Civil e a Constituição Federal asseguram aos pais o direito de definir a educação religiosa dos filhos menores.

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Para Isabela Dario, que também é Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB-MG, é deplorável que conselheiros tutelares se prestem ao papel de fantoches e cabos eleitorais de segmentos religiosos fundamentalistas e racistas, manipulando o Ministério Público - onde o caso é apurado - e o Judiciário para fazer valer suas crenças, em detrimento dos direitos das crianças, adolescentes e suas famílias. 

"Nunca ouvi falar que o MP tenha ido ao Judiciário para proibir crianças judias ou muçulmanas de serem submetidas à circuncisão ou vedar a presença de crianças em cerimônias cristãs que fazem uso de bebida alcoólica", dispara.

O Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (IDAFRO), representado pelo coordenador-executivo Hédio Silva Jr., acompanha o caso e repudia toda inconsistência jurídica, facciosidade e racismo religioso do Conselho Tutelar e do MP ao concluírem que seria do interesse maior e mais saudável para a adolescente o confinamento em abrigo do que a convivência no seio familiar no qual convive há 14 anos.

Para Hédio, a acusação está mais interessada em saber o que houve no ritual do que escutar a mãe. O coordenador ainda aponta que não houve escolha qualificada, sendo um processo que seguiu sem provas suficientes, inclusive, sem exame de corpo de delito e sem que as partes, a mãe, filha e a sacerdotisa do culto, fossem ouvidas. 

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"Tudo que se sucedeu decorreu de uma interpretação do Conselho com a menina, o que resultou em uma ação que, ao meu ver, é grave e que só poderia ser tomada em último caso, que é o afastamento familiar. Nesse caso, eles retiraram a menina do convívio rapidamente e isso não pode. Do ponto de vista jurídico, toda essa movimentação tomada é inconsistente. De fato, não há indícios robustos de que a adolescente estaria em situação de vulnerabilidade", explica. 

O coordenador destaca que o Artigo 24 da Lei Federal n. 12.288/10, do Estatuto da Igualdade Racial, afirma que diz: "O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende: I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins."

Ainda segundo o representante da IDAFRO, no último domingo (12), um pedido de reconsideração com esses argumentos de defesa da mãe foi expedido, sob a justificativa de inconsistência da decisão, ao Ministério Público, que cuida do caso. Para Liliane, é tempo de aguardar, mesmo angustiada, atualizações melhores e torce para reencontrar, em breve, a filha. 

"Espero que a justiça seja feita, que eu possa trazer a minha filha para casa dela, para o quartinho dela, para o conforto dela. Eu sei que a justiça vai me atender. Estou seguindo, vivendo, mas, até que isso se resolva, estou angustiada. Torço para que as notícias melhores cheguem e que ela volte o mais rápido", finaliza. 

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