A agente de formação e articuladora sociocultural, Márcia Aparecida Floriano de Souza, de 32 anos, começou a usar aplicativos de relacionamento antes de 2018. Sua intenção era simples e comum, como a de qualquer pessoa que utiliza o serviço: fazer “matchs”, conhecer pessoas novas e, quem sabe, engatar um relacionamento. Mas a tentativa foi frustada. Por duas vezes, o perfil dela foi bloqueado pelo mesmo aplicativo. Sem qualquer explicação da plataforma do que seria a quebra das “Regras da Comunidade”. Para Márcia, que é uma mulher trans, sua identidade de gênero é a única explicação. "A gente tá mais acostumada a ter uma certa liberdade na internet e redes sociais, eu já usei outros aplicativos de relacionamento e não tinha tido esse problema, de exclusão e preconceito. Começou a ser um problema recorrente no Badoo. Fui duas vezes bloqueada e na segunda eu já percebi que era algo relacionado a minha identidade de gênero.”
Depois de reler os Termos de Uso da plataforma, a usuária decidiu entrar em contato com o serviço para entender qual violação teria sido praticada. Na época, ser uma mulher trans era a única explicação, já que o serviço não dava em 2018 a opção de escolha de gênero que não fosse “masculino’ ou “feminino”.
Um ano depois de ter sua conta bloqueada, Márcia fez um novo perfil, que também foi cancelado pela plataforma. Ela então questionou se havia sido banida por ser uma mulher trans, mas a empresa negou. A usuária também quis saber qual regra teria sido violada, mas não obteve resposta.
Para Márcia, a falta de clareza no motivo que levou ela a ser bloqueada duas vezes a fez acreditar que a transfobia dos algoritmos é a verdadeira culpada de excluí-la do aplicativo, já que durante o tempo de uso nunca teria sofrido nenhuma descriminação, ofensa ou insulto de outros membros.
No começo da pandemia de Covid-19, em 2020, Márcia tentou pela última vez utilizar o aplicativo. Nessa época, a plataforma já dava outras opções de gênero para abertura de cadastro. “Tive sorte pois encontrei meu atual namorado, então parei de usar o serviço antes de ser bloqueada novamente”. Até o fechamento desta edição, o Badoo não enviou resposta.
Outros casos
Em novembro de 2018, outra usuária do Badoo relatou o mesmo problema no portal Reclame Aqui: não havia como informar outros gêneros e quando constava a palavra trans no perfil, a conta era bloqueada. Ainda em 2022, mesmo com outras classificações de gênero disponíveis - usuários e usuárias trans de São Paulo e Goiás também relatam mais de 10 bloqueios sem especificação das Regras de Comunidade.
Todas as reclamações são respondidas pela plataforma, mas nenhuma explica porque apenas pessoas trans enfrentam esse problema.
A problemática dos algoritmos
Aplicativos de relacionamento utilizam algoritmos para sugerir perfis com “alguma afinidade” entre si, como interesses em comum, distância, interesse por gênero, entre outros dados dos usuários. Esses algoritmos (instruções dadas para uma máquina realizar determinada função), são criados por pessoas, o que pode reproduzir comportamentos sociais vividos no mundo offline, já que as tecnologias de Machine Learning (Aprendizado de Máquina), faz com que as máquinas não só obedeçam comandos, mas aprendam com a experiência. Dados divulgados pela Open Democracy em 2019 mostraram que dos profissionais que trabalham com Inteligência Artifical (AI), apenas 22% são mulheres.
Já o estudante de doutorado no Laboratório de Ecologia de Dados do Departamento de Design e Engenharia Centrada em Humanidades da Universidade de Washington, Os Keyes descobriu em sua pesquisa que o reconhecimento automático de gênero deixa de lado indivíduos trans e não-binários.
“Pode ser que os algoritmos estejam aprendendo com o comportamento do usuário, e esse comportamento expressa normativas, e não existem soluções embutidas.” Conta a advogada, Professora Universitária e Diretora do Internetlab, Mariana Valente, 35.
Mariana, afirma que quando a pessoas diversas no trabalho de programação existe um olhar mais profundo e com mais camadas que podem evitar erros como os de perpetuação dos preconceitos de gênero. “Não podemos essencializar, mas quando existe diversidade aumenta muito mais a preocupação com as populações subalternizadas”
No Brasil, segundo a pesquisa divulgada por outro aplicativo, o Happn, 124 milhões de pessoas usam algum aplicativo de relacionamento, o equivalente a 60% da população brasileira em 2018. Esse número aumentou ainda mais na pandemia, colocando o Brasil no segundo lugar de países que mais usam app de relacionamento, perdendo apenas para os EUA.