A data de hoje é marcada pelo Dia da Visibilidade Lésbica, menção escolhida por causa do 1º Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), que aconteceu em 1996. As mulheres lésbicas possuem o histórico de lutarem por si, a fim de conquistar espaços compostos majoritariamente por homens brancos - em especial - no campo da política.
Atualmente, o sistema democrático nacional conta apenas com pelo menos duas mulheres negras lésbicas assumidas em cargos políticos: a governadora do Rio Grande do Norte Fátima Bezerra (PT), e a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB).
Nordestina, professora, lésbica, negra e única mulher a governar um estado brasileiro no momento, Fátima Bezerra já destacou em suas redes sociais que em sua "vida pública ou privada nunca existiram armários". A declaração foi dada após o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), ter se assumido gay no programa "Conversa com Bial", em jullho do ano passado.
Já a sambista, compositora, negra e lésbica Leci Brandão, filiada ao PCdoB desde 2010, candidatou-se ao cargo de deputada estadual por São Paulo, tendo sido eleita e reeleita em 2014 e 2018. Como parlamentar, Leci Brandão dedica-se especialmente à promoção da igualdade racial, ao respeito às tradições de matriz africana e à defesa da cultura popular brasileira.
Segunda deputada negra da história da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), Leci também levanta a questão das populações indígenas e quilombolas, da juventude, em especial pobre e negra, das mulheres e do segmento LGBTQIAP+. Como deputada, é uma das parlamentares mais presentes na casa. Foi membro da Comissão de Direitos Humanos e vice-presidente da Comissão de Educação e Cultura. Já apresentou mais de 100 projetos, tendo 37 leis aprovadas até dezembro de 2018.
Interseccionalidade da mulher lésbica no campo político
De acordo com o artigo "Movimento lésbico brasileiro: história, pautas e conquistas", da jornalista Carolina Torres, a luta por direitos tem história e personagens próprias, que, apesar de ainda serem pouco conhecidas, foram essenciais para as conquistas da comunidade lésbica no Brasil e no mundo.
Um dos aspectos mais imprescindíveis para compreender a atuação da mulher lésbica na política é o conceito de interseccionalidade. Criado pela teórica Kimberlé Crenshaw, interseccionalidade é um método de análise importante para os estudos sociais. Ativista do feminismo negro, a autora americana percebia nos debates entre os movimentos sociais, assim como na construção de políticas públicas, a dificuldade de considerar as vivências de mulheres negras em sua totalidade, em especial, da mulher negra lésbica.
"A política baseada na identidade é extremamente importante para as minorias como forma de autoafirmação e empoderamento. Entretanto, algumas opressões vividas por certos grupos são invisibilizadas. Isso pode ocorrer por meio da universalização das categorias de gênero ou raça, em que se assume que todos os indivíduos de um mesmo gênero ou mesma raça sofrem o mesmo tipo de opressão, e portanto têm exatamente os mesmos interesses e necessidades", avalia a autora.
Crenshaw pontua ainda que utilizar a interseccionalidade como ferramenta de análise significa olhar para as experiências dos grupos humanos de forma completa, levando em conta suas especificidades, o que é essencial para propor políticas públicas assertivas para a solução de desigualdades.
"Significa, portanto, compreender que, sendo parte de dois grupos minoritários ao mesmo tempo, as vivências da mulher lésbica não podem ser analisadas sob um ou outro aspecto de sua identidade política, mas sob os dois ao mesmo tempo, já que sua intersecção cria um tipo específico de opressão, que não é simplesmente machismo, nem simplesmente LGBTfobia", analisa.
Invisibilidade no ativismo
Muito se fala sobre a Revolta de Stonewall como o marco zero na história da comunidade LGBTQIAP+ como um todo. No entanto, o Brasil também possui seu ativismo, marcado pela fundação do "Somos: Grupo de Afirmação Homossexual", em São Paulo, e pelo jornal Lampião da Esquina, no Rio de Janeiro no ano de 1978.
Na época, a comunidade se juntava oficialmente aos diversos grupos de trabalhadores, estudantes, feministas e negros que lutavam por cidadania e contra a ditadura militar. Porém, em fevereiro de 1979, a partir de um debate no Departamento de Ciências Sociais da USP, mulheres lésbicas passaram a fazer parte do Somos que, até então, ainda era composto apenas por homens.
"Após três meses de atuação, percebendo sua dupla discriminação como mulheres homossexuais, elas criaram um subgrupo feminista dentro do Somos, o Grupo de Ação Lésbico-Feminista, conhecido como LF. Foi o primeiro espaço específico destinado a discutir a lesbiandade de que se tem registro dentro da militância brasileira", pontua a jornalista Carolina Torres.
Marisa Fernandes, mestre em História Social pela USP, pesquisadora do Coletivo Feministas Lésbicas e ex-membra do LF, em seu artigo para a Revista Cult, salienta que o início da organização lésbica dentro do Somos foi marcada pelo machismo dos companheiros.
"Em uma reunião de julho de 1979, em que estiveram presentes 10 lésbicas e 80 gays, pautas apresentadas pelo LF como a necessidade de afirmação da identidade específica lésbica, de discussão do machismo e de se aliar ao movimento feminista foram rechaçadas pela maioria dos homens presentes, que as chamaram de histéricas", comenta a mestre em História.
Feminismo
Historicamente, nos anos de 1979 e 1980, o LF participou do II e do III Congresso da Mulher Paulista e suas pautas foram novamente rejeitadas. Defensoras de uma nova visão acerca da sexualidade feminina, as lésbicas defendiam que, para além da luta pelo controle da reprodução, as feministas também lutassem pelo prazer sexual feminino e contra a heterossexualidade imposta aos corpos femininos.
"Suas ideias não foram bem vindas e inclusive foi questionada sua pertinência dentro do movimento feminista, visto que, de acordo com algumas feministas da época, as lésbicas negariam sua própria condição de mulher", ressalta Carolina Torres.
Depois de diversas tensões dentro do Somos, as mulheres lésbicas do LF decidiram, no ano de 1980, se separar por definitivo do grupo. Mudando seu nome para Grupo Ação Lésbica Feminista (Galf), a organização, então independente, passou a disseminar, dentro da comunidade lésbica, informações e conscientização sobre diversos temas caros ao grupo, assim como suas ações.
ChanacomChana
No ano de 1981, o Galf lançou o primeiro número da primeira publicação ativista lésbica do país, a ChanacomChana, segundo Carolina Torres. A publicação era produzida de forma independente e artesanal pelos membros do grupo e circulou dentro dos guetos lésbicos até o ano de 1987. Alcançou, assim como o Lampião, escala nacional de distribuição, evidenciando a lacuna deixada pela mídia tradicional de representatividade lésbica no meio LGBTQIA+.
"Durante uma de suas corriqueiras sessões de venda do periódico, na noite de 23 de julho de 1983, as membras do Galf foram expulsas do Ferro's Bar, no centro de São Paulo, e ficaram proibidas de retornar àquele que era um dos principais points lésbicos da cidade", salienta Torres.
Como resposta àquela tentativa de silenciamento, foi organizada uma manifestação. No dia 19 de agosto de 1983 as lésbicas invadiram o Ferro's Bar sob a liderança do Galf.
"A mobilização foi tão grande, envolvendo gays, lésbicas, feministas, defensores de direitos humanos e políticos, além da grande imprensa, que os donos do Ferro's Bar sentiram a pressão e voltaram atrás em sua decisão, liberando novamente a comercialização do ChanacomChana em suas dependências. Em homenagem ao acontecido, a data marca o Dia Nacional do Orgulho Lésbico no Brasil", completa.
Seminário Nacional
Carolina Torres pontua que o movimento feminista e o homossexual já tinham seus congressos nacionais, mas nunca acolhiam propriamente as pautas das mulheres lésbicas, estas decidiram, no ano de 1996 se reunir em um evento próprio.
"Assim, no dia 29 de agosto, cerca de 100 mulheres lésbicas de todo o país se reuniram na cidade do Rio de Janeiro no 1º Seminário Nacional de Lésbicas", enfatiza.
Dentre as principais pautas debatidas no evento, destacam-se o cuidado com a saúde sexual e a definição da data como Dia Nacional da Visibilidade Lésbica. O evento ainda acontece, sempre de forma rotativa, e, em sua oitava edição, mudou de nome para incluir também as mulheres bissexuais, passando a ser Senalesbi. Hoje em dia, a data marca a Marcha das Mulheres Lésbicas e Bissexuais.
A mulher negra lésbica continua em busca de visibilidade
Contudo, a filósofa e socióloga Nadia Cristina Nogueira pontua que se para as mulheres lésbicas o caminho é marcado pela invisibilidade, se essa mulher for negra e lésbica o apagamento é maior ainda.
"Na introdução ao livro 'E eu não sou uma mulher? Mulher Negra e Feminismo', Bell Hooks confirma o silenciamento relegado às mulheres negras, que é também o das oprimidas e dos oprimidos em geral, e da lésbica negra de maneira particular", pontua.
"Isso porque a ela [lésbica negra] coube a resistência histórica contra o sexismo, o racismo, o machismo, o patriarcado e a misoginia reinantes na sociedade brasileira, bem como a dificuldade de acesso a profissões socialmente valorizadas e a invisibilidade das violências cotidianas por seu lugar social negligenciado", completa a filósofa
Diante do racismo estrutural, do sexismo institucionalizado, do conservadorismo latente, como forças opressivas na vida das mulheres, das negras, das lésbicas, das mulheres trans, das travestis e de tantos outros segmentos sociais, Nadia avalia que a mulher negra lésbica, por todas as opressões históricas às quais foi submetida, teve que se libertar de seu conjunto.
"O contato com essas batalhadoras incansáveis, há mais de quatro décadas lutando pela reivindicação de direitos, nos permitiu compreender o quanto a intersecção de raça, gênero, classe, entre outras, é marcadora que aprisiona sujeitos históricos, normalmente invisibilizados para além de seus espaços de atuação. Portanto, em sua ação política, elas nos permitiram usar nossos ouvidos bem atentos diante de um silêncio enfim terminado", finaliza.