O ressurgimento da mosca-da-bicheira (Cochliomyia hominivorax) na América Central e no México reacendeu alertas sanitários globais. Erradicada há décadas na América do Norte, a praga parasitária já causou prejuízos bilionários, com destaque para a suspensão de exportações mexicanas para os Estados Unidos. Nesse contexto, o Brasil se posiciona estrategicamente como um dos principais beneficiários, reafirmando sua liderança no mercado global de carne bovina.
O México, um dos maiores exportadores de gado vivo das Américas, enfrenta um cenário de perdas econômicas sem precedentes. De acordo com a Confederação Nacional de Organizações Pecuárias do México, o embargo norte-americano às exportações mexicanas já causou prejuízos estimados em US$ 3 bilhões. Apenas no estado de Chihuahua, mais de 110.000 cabeças de gado ficaram paradas nos últimos meses, representando perdas semanais de até US$ 30 milhões.
Ameaça à segurança alimentar global
Na América Central, países como Panamá, Costa Rica e Honduras também foram afetados. Mais de 40.000 casos de miíase - infecção causada pelas larvas da mosca - foram registrados em 2023 e 2024, forçando a implementação de medidas emergenciais sanitárias e elevando os custos de produção. O impacto econômico se estende além das fronteiras regionais, ameaçando a segurança alimentar global e acentuando a necessidade de estratégias geopolíticas coordenadas. O temor se difunde também pela possibilidade de transmissão ao ser humano.
O cenário de crise no México abre espaço para o Brasil ampliar sua relevância geoestratégica como principal fornecedor de carne bovina no mercado global (além das carnes suína e de frango). Em 2023, o Brasil exportou mais de 2,3 milhões de toneladas de carne bovina, gerando US$ 10,2 bilhões em receitas. Seus principais mercados, a China (44,92%), e os Estados Unidos (9,47%), dependem da regularidade de um fornecimento confiável e de qualidade, algo que o Brasil tem conseguido garantir.
A robustez sanitária brasileira continua sendo um diferencial competitivo no mercado global de carne bovina, mas os desafios relacionados à rastreabilidade ainda precisam ser superados para atender às demandas de mercados estratégicos. Atualmente, o Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (SISBOV) cobre cerca de 2% do rebanho nacional, o que representa aproximadamente 4 milhões de animais. Embora limitado em termos percentuais, esse sistema permite ao Brasil cumprir exigências específicas de mercados exigentes, como a União Europeia (UE), que requerem identificação individual dos animais.
Aumentando a rastreabilidade
Reconhecendo a importância da rastreabilidade - incluso em termos de custos e benefícios -, para manter sua competitividade, o governo brasileiro anunciou planos para implementar um sistema nacional de rastreamento de gado até 2027. Esse projeto busca fortalecer a conformidade com padrões internacionais de segurança alimentar e sustentabilidade, além de ampliar o acesso a novos mercados estratégicos, como Japão e Coreia do Sul, que valorizam critérios rigorosos de segurança e origem.
O nível atual de rastreabilidade ainda está aquém do desejado, mas o Brasil já é reconhecido por suas iniciativas em modernização e comprometimento com a segurança sanitária. Esses esforços posicionam o país como líder global, abrindo portas para consolidar ainda mais sua presença em mercados premium e atender às crescentes demandas por transparência e responsabilidade socioambiental na cadeia produtiva.
O embargo a carne mexicana, mencionado ao inicio, destaca a importância de estratégias geoestratégicas no comércio global de carne bovina. Os Estados Unidos, que tradicionalmente importam cerca de 23%-29% da carne mexicana, agora enfrentam uma lacuna significativa no abastecimento. Essa situação representa uma oportunidade para o Brasil expandir sua participação no mercado norte-americano, reforçando laços comerciais em um momento de instabilidade para seus concorrentes regionais.
Mosca-da-bicheira continua sendo uma ameaça
O fortalecimento da presença brasileira no mercado global de alimentos, especialmente no setor de carne bovina, reforça tanto sua competitividade econômica como também, até certo ponto, sua influência geopolítica em negociações multilaterais. De fato, o denominado "Acordo Global Alimentar", ainda sem existência formal (já existem declaraçōes internacionais específicas que servem de base a esta ideia devido à mudança climática) está sendo impulsado pelo atual governo brasileiro.
A diplomacia alimentar brasileira, impulsionada pela capacidade de atender à crescente demanda global por proteínas, posiciona o país como um fornecedor estratégico e confiável em um cenário de instabilidade marcado por crises sanitárias e tensões comerciais. Em um contexto onde a geopolítica dos alimentos se torna cada vez mais relevante, nações competem para se consolidar como exportadores seguros e resilientes, utilizando sua produção agrícola e pecuária como ativos estratégicos. O Brasil, com sua robusta infraestrutura produtiva e papel de destaque nas cadeias globais de suprimento, emerge como uma alternativa crucial para mercados consumidores cada vez mais vorazes que buscam mitigar riscos e garantir a segurança alimentar diante de desafios climáticos e logísticos.
Embora o cenário seja promissor, o Brasil não está imune aos riscos. A mosca-da-bicheira continua sendo uma ameaça devido, inclusive, à proximidade com regiões afetadas e ao comércio internacional intenso. Protocolos rigorosos de biossegurança, fiscalização nas fronteiras e rastreamento contínuo são essenciais para evitar introduções, reintroduções ou difusões da praga. Além disso, o Brasil precisa investir em infraestrutura logística e inovação tecnológica para sustentar o aumento das exportações sem comprometer sua competitividade ou afetar a demanda interna. A ampliação da rastreabilidade animal e o fortalecimento de parcerias público-privadas no setor são ações prioritárias para garantir a sustentabilidade do setor pecuário no longo prazo.
A crise sanitária mexicana ressalta a evidente importância, nos tempos que correm, de uma diplomacia sanitária e alimentar robusta para aproveitar as oportunidades econômicas que surgem. Ao preencher a lacuna deixada pelo México, o Brasil tem condiçōes de gerar um adicional de US$ 1 bilhão em receitas no curto prazo, uma cifra nada desprezível. Essa expansão econômica logicamente beneficiará o setor exportador, mas, desde uma perspectiva geopolítica, mais ampla, também fortalecerá a posição do Brasil como líder global em um mercado bilionário, que alcançou, em 2024 o valor estimado de US$ 487,46 bilhões e que deverá atingir US$ 637,70 bilhōes em 2029.
A relevância geoestratégica do Brasil vai além do impacto meramente econômico. Ao assumir um papel de liderança no combate a crises sanitárias e alimentar globais, o país pode ampliar sua influência política em fóruns regionais e internacionais como, por exemplo, a Organização Mundial da Saúde Animal, e promover políticas de cooperação regional para prevenir surtos futuros.
A emergência da mosca-da-bicheira na América Latina expõe, de forma evidente, as fragilidades zoossanitárias que afetam os mercados regionais e internacionais. Para o Brasil, o grande desafio consiste em equilibrar as oportunidades econômicas com altos padrões de biossegurança e sustentabilidade, exigidos por mercados rigorosos, como o europeu e o norte-americano. As recentes manifestações de agricultores europeus, que defendem a chamada "cláusula espelho", evidenciam a crescente preocupação com o acordo UE-Mercosul, firmado em 6 de dezembro. Esse movimento ressalta a demanda por normas sanitárias e ambientais equivalentes entre produtos locais e importados, tendência que deverá se intensificar nos próximos anos.
Diante desse cenário, o Brasil tem a oportunidade - e a responsabilidade - de consolidar sua liderança no mercado global de carne bovina, projetando-se como um ator geoestratégico confiável e comprometido com a segurança alimentar e o meio ambiente. A combinação de competitividade e sustentabilidade permitirá ao país atender às exigências globais, ao mesmo tempo em que fortalece sua posição no comércio internacional.
Armando Alvares Garcia Júnior não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.