Jucilene de Santana Juriti e Angelo Oliveira já haviam comprado o enxoval do bebê previsto para chegar neste mês de junho.
O casal, morador do bairro de São Tomé de Paripe, em Salvador, já tem uma menina de quase cinco anos e um menino de dois, e estava prestes a dar as boas-vindas a seu terceiro filho, Alan Júlio.
A trajetória da família descarrilou em 17 de maio, um dia que corria normalmente para Jucilene, então grávida de oito meses. Ela estava com as crianças diante do portão da casa onde mora quando foi atingida, no meio da tarde, por três tiros durante um confronto entre policiais e criminosos em sua rua.
Jucilene passou uma semana em coma no hospital. Um dos tiros a fez perder um rim; outro resultou em uma cirurgia no braço. Mas a principal perda foi a do bebê, atingido pelo terceiro disparo.
"A minha menina mais velha ainda pergunta: 'meu irmão morreu?'", conta Angelo.
Ele, que trabalha como servente de pedreiro, precisou pedir um adiantamento de R$ 500 no emprego para cobrir os custos do sepultamento de Alan Júlio, enterrado enquanto sua mulher ainda estava hospitalizada.
"É uma perda que não tem explicação. A gente tenta se conformar, mas não tem como explicar essa dor", lamenta Angelo.
Segundo a imprensa baiana informou no dia 17 de maio, policiais em patrulhamento depararam com um suspeito na área onde mora Jucilene, o que deu início a uma troca de tiros.
Em nota à BBC News Brasil, a PM baiana afirmou que as investigações estão sendo conduzidas pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). "É importante salientar que só a partir dos resultados da perícia técnica pode-se determinar de onde partiram os disparos das armas utilizadas", diz a nota.
Jucilene agora se recupera em casa, "de repouso e muito emotiva", explica o marido. Com o braço operado, ela ainda não consegue segurar as crianças no colo.
O trágico desfecho do caso deixou a família em situação ainda mais delicada financeiramente, diante dos gastos com medicamentos para Jucilene, além da alimentação especial e da fisioterapia que seu estado de saúde exige.
"Estamos vivendo bem na cara e na coragem mesmo, com o pessoal nos ajudando como pode", prossegue Angelo.
Em 4 de junho, menos de um mês depois do ocorrido com Jucilene, uma história semelhante se desenrolou a 30 minutos dali, também em Salvador. No bairro do Curuzu, duas mulheres foram mortas a tiros durante um confronto entre policiais e criminosos.
Viviane Soares e Maria Célia de Santana eram vizinhas e estavam conversando na porta de casa quando, segundo relatos de testemunhas, foram atingidas por disparos no momento em que a polícia perseguia um suspeito na rua onde moravam.
A PM informa que o Comando de Policiamento Especializado da corporação abriu um procedimento para apurar o caso e aguarda a perícia técnica sobre de onde saíram os tiros que mataram as duas mulheres.
Caso Kathlen e as mortes de pessoas negras
A tragédia de mulheres vítimas do fogo cruzado em ações policiais ganhou os holofotes nacionais na semana passada por conta da morte da jovem carioca Kathlen Romeu, grávida de 14 semanas que foi vítima de uma bala perdida durante um confronto na Zona Norte do Rio de Janeiro.
"Perdi minha neta desse jeito mais estúpido", desabafou a jornalistas, aos prantos, a avó de Kathlen, diante do Instituto Médico Legal (IML) no Rio. "Uma garota que trabalha, que estuda, formada."
Doze policiais envolvidos na operação foram afastados das ruas enquanto o caso é investigado, segundo a PM fluminense. No dia da operação, a corporação disse que "policiais militares foram atacados a tiros durante patrulhamento" na área onde Kathlen caminhava com a avó. "Após cessarem os disparos, os agentes encontraram uma mulher ferida e a socorreram ao hospital".
Casos recentes como os de Kathlen, Jucilene, Viviane e Maria Célia ocorrem em um país onde pessoas negras, na contramão de outras etnias, morrem cada vez mais.
A taxa de mortalidade de negros e negras brasileiros é quase três vezes maior que a do restante da população, em proporção ao seu tamanho: enquanto morrem 1,5 não negros a cada 100 mil habitantes, morrem 4,2 negros a cada 100 mil habitantes, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Uma de suas publicações recentes, o Atlas da Violência 2020, feito junto com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), aponta que os homicídios de pessoas negras cresceram 11,5% na década entre 2008 e 2018, no caminho inverso dos homicídios de brancos, amarelos e indígenas, que caíram 12,9% — as categorias são definidas no estudo.
A disparidade racial foi reforçada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, também do FBSP, que apontou que 74,4% das vítimas de homicídio em 2019 eram negros.
"Quando a gente fala de violência no Brasil, a desigualdade racial e o racismo vêm à tona", disse à BBC News Brasil Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, ao comentar o caso Kathlen. "E isso é ainda mais exacerbado em operações policiais."
Quase 80% das mortes resultantes dessas operações são de negros, segundo os dados obtidos pelo Fórum a partir da análise de boletins de ocorrência de todo o país.
'Pobre tem que morrer à bala na porta de casa?'
As balas perdidas trocadas durante essas operações "encontram corpos negros", que são maioria da população nas comunidades mais vulneráveis, prosseguiu Bueno.
"É disso que estamos falando quando falamos do racismo estrutural. De uma população excluída de uma série de direitos, historicamente", afirma a diretora do FBSP. "Quando o policial troca tiros (nessas comunidades), está assumindo risco de haver danos colaterais. Será que ele assumiria esse risco em (uma área nobre como) Copacabana?"
Eliene Assis de Santana, mãe da baiana Jucilene, diz que acompanhou o caso de Kathlen pela TV e pensou na tragédia vivida por sua própria filha.
"Nós nos sentimos desamparados. É uma sensação de vulnerabilidade e impunidade. Como pode acontecer isso? Pobre tem que morrer à bala na porta da própria casa? Parece um pesadelo que bate na porta de muitos", lamenta.
"Tem que ter justiça para acabar com essa impunidade e esse despreparo. Os policiais são treinados (para seu trabalho). Mas parece que estão brincando de tiro ao alvo."
Eliene diz que, apesar do aperto financeiro, tem ajudado a filha a se recuperar "com muito amor, (algo) que ela tem de graça".
O caso está sendo acompanhado pela Defensoria Pública da Bahia, que recomendou que a família fizesse uma denúncia na Corregedoria da PM. Mesmo antes da conclusão das investigações, a Defensoria quer que o Estado baiano "reconheça o que aconteceu com Jucilene" e pretende pedir uma indenização em acordo extrajudicial, explica à BBC News Brasil Lívia Almeida, defensora pública que coordena a área especializada em Proteção aos Direitos Humanos.
"Não interessa se as balas foram ou não da polícia, o Estado é responsável da mesma forma" pelo ocorrido com Jucilene, opina Almeida, por se tratar de de um desdobramento de uma operação da polícia.
"Isso (indenização) não vai trazer de volta o bebê nem a saúde dela (Jucilene)", diz a mãe Eliene. "Mas vai amenizar, vai ajudar ela e sua família."
A Comissão dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa da Bahia também terá uma reunião com o Comando Geral da PM nesta quarta-feira (16/06) "para pedir a apuração desses casos e mudanças nesse modus operandi, que tem provocado tantas perdas de vidas, inclusive de crianças e mulheres negras que nada têm a ver com a criminalidade", afirma à BBC News Brasil a deputada estadual Olivia Santana (PCdoB), presidente da comissão.
Mulheres negras
As mulheres em geral representam uma parcela muito inferior à dos homens em mortes violentas.
No caso de operações policiais, por exemplo, elas são 0,8% do total de vítimas fatais, segundo o FBSP.
Quando há fatalidades durante operações policiais, não é incomum que surjam acusações de que os mortos tinham envolvimento com a criminalidade. Esse discurso, no entanto, é posto em xeque pelos casos como os de Jucilene e das demais mulheres citadas na reportagem, aponta a defensora Lívia Almeida. "São pessoas que não têm a menor chance de serem chamadas de suspeitas", diz ela.
"E independentemente de pessoas terem ou não envolvimento (com a criminalidade), é preciso ter o devido processo penal, é preciso ter sentença."
"Lamentavelmente, o racismo é estampado na prática policial em nosso país, não só na Bahia", diz a deputada Santana. "É preciso encarar isso, senão não haverá mudança. Há uma banalização da violência contra os negros, as pessoas mais pobres. (...) Não há pena de morte no Brasil, as ela acontece frequentemente na vida da cidadania precarizada da população negra, sem lei, sem processo — só o rito sumário."
E mesmo entre as mulheres as diferenças raciais se repetem, segundo o Anuário de Segurança Pública: entre 2008 e 2018, enquanto o número de mulheres não negras assassinadas no país caiu quase 12%, o de negras subiu pouco mais de 12%.
"O que a gente tem percebido é que o Brasil reduziu um pouco a violência letal de 2018 para cá. Mas esses bons resultados só se traduziram para uma pequena parcela. A população negra está cada vez mais atingida", afirmou Samira Bueno, do FBSP.
Quanto a Angelo, marido de Jucilene, uma de suas queixas é por não ter recebido diretamente nenhuma explicação do governo do Estado da Bahia sobre como sua mulher foi alvejada e seu bebê, morto, durante uma ação envolvendo a PM.
"Queria ter um posicionamento deles (governo de Rui Costa, PT), porque somos uma família carente, necessitada. Estamos bem desamparados."
Questionada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa do governo afirmou que seu posicionamento no momento é o mesmo da Polícia Militar.
"O que aconteceu com a minha esposa e comigo pode acontecer com outras famílias. Não podemos pagar pelo erro dos outros", afirma Angelo. "Ela (Jucilene) foi alvejada. Foram 3 disparos, perdeu o bebê. E nós estamos passando por esse transtorno todo."
*Colaborou Felipe Souza, da BBC News Brasil em São Paulo