Declarações do presidente Jair Bolsonaro em uma reunião ministerial em 22 de abril, transcritas e divulgadas pela Advocacia-Geral da União (AGU), reacenderam as acusações que o ex-ministro Sergio Moro fez contra o mandatário de interferência na Polícia Federal e iniciaram nova guerra de versões entre os dois ex-aliados.
O ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, deve decidir nesta sexta-feira (15) se retira o sigilo do vídeo da reunião tida como peça-chave no inquérito aberto para investigar o presidente Bolsonaro sob acusação de crimes como advocacia administrativa e corrupção - ele nega ter cometido qualquer irregularidade.
Vieram a público na imprensa brasileira trechos de declarações de Bolsonaro, que estão sob sigilo no STF, nas quais ele cobra o recebimento de relatórios de inteligência da PF e ameaça demitir subordinados a fim de proteger familiares e amigos.
As defesas de Moro e Bolsonaro divergem sobre o teor das declarações do presidente. De um lado, a AGU afirma que o mandatário estava preocupado com a segurança física de sua família, e que isso não tem a ver com a PF.
De outro, o advogado do ex-ministro afirma que a transcrição confirma a pressão que Bolsonaro fazia sobre a PF para obter informações de inquéritos envolvendo seus filhos.
Mas o que diz a transcrição?
A AGU transcreveu duas declarações de Bolsonaro durante a reunião.
Na primeira, segundo transcrição divulgada por jornais brasileiros, o presidente afirma:
"Eu não posso ser surpreendido com notícias. Pô. eu tenho a PF que não me dá informações; eu tenho as inteligências das Forças Armadas que não têm informações: a Abin tem os seus problemas, tem algumas informações, só não tem mais porque tá faltando realmente... temos problemas... aparelhamento, etc. A gente não pode viver sem informação."
E complementa: "E não estamos tendo. E me desculpe o serviço de informação nosso — todos — é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça, não é extrapolação da minha parte. É uma verdade".
Cinquenta minutos depois, segundo a AGU, Bolsonaro fez uma segunda declaração.
"Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro oficialmente e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f... minha família toda de sacanagem, ou amigo meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura. Vai trocar; se não puder trocar, troca o chefe dele; não pode trocar o chefe, troca o ministro. E ponto final. Não estamos aqui para brincadeira", afirmou o presidente.
O que Bolsonaro e sua defesa dizem?
De acordo com a AGU, a primeira declaração de Bolsonaro sobre relatórios de inteligência e a segunda em que ameaça demitir subordinados estão em contextos diferentes.
"As declarações presidenciais com alguma pertinência NÃO estão no mesmo contexto, muitíssimo pelo contrário: estão elas temporal e radicalmente afastadas na própria sequência cronológica da reunião", afirmou em manifestação no inquérito do STF, divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo.
No texto, a AGU argumentou que Bolsonaro não menciona "direta ou indiretamente" os termos "Polícia Federal", "superintendente" ou "diretor-geral". A defesa diz que a ameaça de demissão de integrantes da "segurança nossa no Rio Janeiro" feita pelo presidente faz referência à segurança presidencial e de seus familiares, sob responsabilidade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e não da PF.
Bolsonaro já deu ao menos três declarações a jornalistas sobre o tema.
No dia 12, ele afirmou não ter feito qualquer referência à PF. "Não existe, no vídeo todo, a palavra 'Polícia Federal' nem 'superintendência'. Não existe 'superintendente' nem 'Polícia Federal'. Essa interpretação vai da cabeça de cada um. Não tem a palavra 'investigação'."
Um dia depois, disse "a preocupação minha sempre foi depois da facada, de forma bastante direcionada para a segurança minha e da minha família" e que "a Polícia Federal nunca investigou ninguém da minha família".
Em seguida, nesta sexta (15), admitiu ter mencionado PF na reunião no contexto de críticas a relatórios de inteligência. "Palavra 'PF'. Duas letras. Tem a ver com a Polícia Federal, mas é reclamação PF, no tocante ao serviço de inteligência."
O que Moro e sua defesa dizem?
O advogado de Moro, Rodrigo Rios, afirmou que os trechos transcritos pela AGU reforçam a tentativa de interferência na PF, mas defendeu a divulgação da íntegra do vídeo para contextualizar as falas de Bolsonaro.
Para ele, a transcrição parcial "busca apenas reforçar a tese da defesa do presidente" e omite contexto e "trechos relevantes para a adequada compreensão, inclusive na parte da 'segurança do RJ'".
Rios argumenta que, ainda assim, a troca do diretor-geral da PF e do superintendente do órgão no Rio, confirmam "que as referências diziam respeito à PF e não ao GSI".
Moro pediu demissão do cargo no dia 24/4, horas depois da exoneração de Maurício Valeixo do comando da PF.
Em seu depoimento à Polícia Federal em 2/5, o ex-ministro disse: "O presidente afirmou que iria interferir em todos os Ministérios e quanto ao MJSP (Ministério da Justiça e Segurança Pública), se não pudesse trocar o superintendente do Rio de Janeiro, trocaria o Diretor Geral e o próprio ministro da Justiça".
Bolsonaro tentou nomear o então chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, para o lugar de Valeixo, mas o ministro Alexandre de Moraes, do STF, barrou a nomeação por entender que houve desvio de finalidade.
Dias depois, assumiu então o posto o delegado Rolando Alexandre. Um dos primeiros atos dele foi a troca do superintendente da PF no Rio de Janeiro.
O que disseram ministros?
Segundo o jornal Folha de S.Paulo, oito pessoas ouvidas pela Polícia Federal no âmbito da investigação confirmaram a versão de Moro de que Bolsonaro queria trocar Valeixo desde 2019 e sete delas confirmaram os planos do presidente de mexer no comando da superintendência fluminense da PF.
Ao se demitir no dia 24/4, Moro afirmou que o presidente lhe disse "mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato dele que ele pudesse ligar, que ele pudesse colher informações, colher relatórios de inteligência".
Para o ex-ministro, não é apropriado que o presidente tenha acesso direto a esse tipo de informação e qualquer mudança no comando da PF sem razões técnicas deixaria claro que "havia uma interferência política na Polícia Federal, que gera um abalo à credibilidade minha, mas também do governo".
Naquele mesmo dia, Bolsonaro fez um pronunciamento em que afirmou que a prerrogativa de nomeação do diretor-geral da Polícia Federal é do presidente da República. "Quero um delegado, que eu sinta que eu possa interagir com ele. Por que não? Interajo com os homens da inteligência das Forças Armadas, interajo com a Abin. (...) Eu nunca pedi para ele o andamento de qualquer processo. Até porque, com ele, a inteligência perdeu espaço na Justiça."
Durante sua fala, o presidente afirmou também que havia sugerido a Moro a troca do superintendente do Rio de Janeiro por causa de investigações que envolveram Bolsonaro e um de seus filhos no âmbito da apuração sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco.
Dois ministros do governo Bolsonaro afirmaram a investigadores da PF que o presidente não cobrava acesso a investigações, mas a relatórios de inteligência.
O ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, disse que Bolsonaro "não demonstrava insatisfação com elementos da polícia judiciária, mas a sua insatisfação era com os dados de inteligência, que precisavam ser ao presidente fornecidos para tomada de decisões".
Moro afirmou à PF que o então colega ministro general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Instituicional, o GSI) lhe disse certa vez que "esse tipo de relatório que o presidente quer ele não pode receber". Mas em depoimento, Heleno declarou não se lembrar de ter afirmado isso e que Bolsonaro não queria ter acesso a investigações.
Por outro lado, os depoimentos de Heleno e de outro ministro, general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), contradizem o presidente Bolsonaro e relatam que o mandatário fez sim menções à PF na reunião ministerial de 22/4.
Pouco depois, Bolsonaro afirmou a jornalistas que Ramos se "equivocou".
O que mais foi dito na reunião?
A íntegra do conteúdo só será conhecida caso o ministro Celso de Mello retire o sigilo total do conteúdo, mas trechos vieram à luz na imprensa brasileira depois que o vídeo de reunião foi exibido na íntegra para algumas pessoas relacionadas ao inquérito na no dia 12/5, no Instituto Nacional de Criminalística (INC), na Polícia Federal em Brasília.
Assistiram ao vídeo o ex-ministro Moro, acompanhado de seu advogado; policiais federais envolvidos com a investigação; integrantes da equipe do procurador-geral da República, Augusto Aras; e um juiz que trabalha com o relator do caso no STF, Celso de Mello. O advogado-geral da União, José Levi, também esteve na PF. Todos tiveram de deixar os celulares do lado de fora da sala.
Além dos pontos citados por Moro, outros assuntos também foram tratados na reunião ministerial do dia 22 de abril. A reunião envolveu críticas a ministros do STF, a governadores e prefeitos e "broncas" no primeiro escalão de seu governo.
Segundo a colunista de O Globo Bela Megale, fontes que participaram da reunião relataram que Bolsonaro estava de "péssimo humor" no encontro. O presidente teria usado o encontro para dar uma "bronca" em todos os seus ministros, dizendo que todos estavam passíveis de demissão.
Em vários momentos, Bolsonaro usou palavrões. Ainda segundo a colunista, o encontro registrou uma discussão acalorada entre os ministros Paulo Guedes (Economia) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional).
Ainda durante o encontro, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, teria dito que os ministros do Supremo Tribunal Federal "tinham que ir para a cadeia", segundo O Estado de S. Paulo.
Já a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, teria sido registrada durante o evento defendendo a prisão de governadores e prefeitos. Durante o encontro, Bolsonaro teria se referido ao governador de São Paulo, João Doria, como "bosta". Pessoas do governo do Rio de Janeiro seriam "estrume", no dizer do presidente, segundo O Estado de S. Paulo.