O presidente Jair Bolsonaro participava do lançamento de um programa sobre aviação civil no Palácio do Planalto na quarta-feira (07/10), quando disse que tinha "acabado com a Lava Jato". A fala foi em tom irônico — na verdade, o presidente estava fazendo um autoelogio e dizendo que não existia mais corrupção no governo.
O discurso, no entanto, repercutiu mal entre apoiadores da Lava Jato e profissionais que atuam nas investigações.
Os procuradores passaram a apontar momentos em que Bolsonaro teria agido para enfraquecer a operação anticorrupção. Seria o caso da nomeação do atual procurador-geral da República, Augusto Aras; da fritura e posterior demissão do ex-ministro Sergio Moro; e das mudanças no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
"É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho, dizer a essa imprensa maravilhosa que eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo. Eu sei que isso não é virtude, é obrigação", disse Bolsonaro.
"Eu sei que isso não é virtude, é obrigação, mas nós fazemos um governo de peito aberto. Quando eu indico qualquer pessoa para qualquer local, eu sei que é uma boa pessoa, tendo em vista a quantidade de críticas que ela recebe em grande parte da mídia", declarou.
A fala de Bolsonaro também ocorre num momento em que a Lava Jato do Paraná realmente pode estar se aproximando do fim: por decisão do PGR Augusto Aras, a força-tarefa curitibana da operação só tem mandato para funcionar até o dia 31 de janeiro de 2021.
Se nada mudar, é possível que o grupo de 14 procuradores hoje dedicados à investigação deixe de existir. Neste caso, uma das possibilidades é que os casos hoje sob controle da força-tarefa passem à responsabilidade do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do MPF no Paraná.
Apesar disso, os atuais procuradores da Lava Jato insistem que as investigações poderão, sim, continuar.
"(...) A operação Lava Jato, apesar de ter descortinado um mega-esquema de corrupção, ainda está pleno vapor e ainda tem um amplo horizonte de práticas ilícitas a serem descobertas, a serem desveladas", disse nesta quarta-feira o procurador Alessandro Oliveira, coordenador da Lava Jato paranaense, ao comentar a deflagração da 76ª fase da operação, ocorrida no mesmo dia.
No mesmo dia, o ex-ministro Sergio Moro aproveitou para criticar a fala de Jair Bolsonaro, sem no entanto citar o presidente nominalmente.
As tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a democracia. Esse filme é conhecido. Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?
— Sergio Moro (@SF_Moro) October 8, 2020
"As tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil", escreveu ele, em sua conta no Twitter.
Mas afinal, quais foram as atitudes de Bolsonaro que contribuíram para enfraquecer a Lava Jato?
1. Nomear Augusto Aras para o posto de PGR
A relação do procurador Augusto Aras com a Lava Jato é conturbada desde que ele foi nomeado para o cargo, em setembro de 2019.
Naquele momento, Bolsonaro quebrou uma regra não oficial, ao escolher um PGR que não havia sido escolhido em votação dos membros do MPF, organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Aras foi o primeiro escolhido fora da lista desde 2003.
A nomeação do procurador baiano também foi vista como uma derrota para o então ministro da Justiça Sergio Moro, que nos bastidores foi contra a escolha dele para o cargo.
Um dos piores momentos da relação de Augusto Aras com a Lava Jato se deu em julho deste ano, quando ele disse que a operação passava por uma "hipertrofia" e que era preciso "corrigir rumos" para que o "lavajatismo" não perdurasse.
"A hora é hora de corrigirmos rumos para que o lavajatismo não perdure, mas a correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção. Contrariamente a isso, o que temos na Casa (MPF), é um pensamento de buscar fortalecer a investigação científica e visando respeitar direitos e garantias fundamentais", disse Aras, durante um evento do grupo de advogados Prerrogativas.
Um pouco antes, outro episódio conflituoso: a subprocuradora-geral Lindôra Araújo fez uma visita à força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e tentou acessar documentos sigilosos dos casos no Paraná.
A ida a Curitiba foi avisada no dia anterior, por telefone — um procedimento incomum no MPF.
Depois da visita, a força-tarefa curitibana enviou ofício à Corregedoria-Geral do MP, reclamando da visita.
2. A demissão de Sergio Moro
Em abril deste ano, o ex-ministro Sergio Moro anunciou seu pedido de demissão da pasta da Justiça nos piores termos possíveis.
O antigo juiz da Lava Jato não só rompeu politicamente com Jair Bolsonaro, como deixou o governo acusando o ex-chefe de tentar interferir na Polícia Federal para proteger aliados políticos e familiares de investigações.
A saída foi o ato final de uma série de desgastes entre o presidente e Moro, que chegou a ter o status de "superministro" no começo do governo.
A primeira bordoada foi em meados de 2019: Bolsonaro tirou da alçada de Moro o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), que acabou alojado na estrutura do Banco Central. O órgão também sofreu uma série de mudanças que o afastaram da proposta original de Moro.
No fim do ano passado, outro tropeço: o governo deixou de lado qualquer esforço em defesa do chamado "pacote anticrime", um projeto de Moro que acabou desfigurado no Congresso.
Ao todo, 11 pontos da proposta original defendida pelo ex-juiz foram retirados do texto pelos congressistas.
3. A escolha de Kassio Nunes para o STF
O episódio mais recente a ser visto como uma tentativa de enfraquecer a Lava Jato foi a indicação do desembargador Kassio Nunes Marques para o posto de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Nunes é considerado um juiz "garantista" — isto é, que tende a privilegiar os direitos e garantias dos réus no curso das investigações, muitas vezes confrontando a posição do Ministério Público. No STF, Kassio se alinharia a ministros como Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
Se for aprovado pelo Senado, entre as muitas atribuições do cargo, o ministro pode ser fundamental para a absolvição ou redução de penas de políticos.
A escolha de Kassio Nunes foi celebrada por vários políticos, inclusive alguns que são hoje investigados em casos da Lava Jato. É o caso, por exemplo, do senador Ciro Nogueira (PP-PI), que elogiou em público a escolha de Kassio Nunes.
4. As interferências na PF e na Receita Federal
Desde o começo da gestão, Bolsonaro acumula mudanças em órgãos que possuem funções de fiscalização e controle, como a Receita Federal, a Polícia Federal e o Coaf.
Em abril de 2020, por exemplo, o presidente da República determinou a exoneração do delegado Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da Polícia Federal, para o qual ele tinha sido indicado por Sergio Moro.
Após a queda de Valeixo, Bolsonaro tentou emplacar no cargo o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem — ele é próximo de Bolsonaro e chegou a coordenar a segurança do presidenciável durante a campanha eleitoral de 2018. A nomeação, no entanto, acabou não acontecendo, e o cargo é hoje ocupado pelo delegado Rolando Alexandre de Souza.
Em setembro de 2019, Bolsonaro também fez uma série de mudanças na Receita Federal, órgão que cumpre importante função no combate a crimes financeiros.
O presidente mandou embora o nº 2 na hierarquia do Fisco, José Paulo Ramos Fachada. Acelerou a transferência para um posto fora do Brasil do chefe da Polícia Federal no Rio, Ricardo Saadi. Ameaçou trocar o chefe da Receita no Rio, Mário Dehon, e até o delegado da alfândega do porto de Itaguaí (RJ), José Alex de Oliveira.
As ameaças relativas a Dehon e Oliveira acabaram não saindo do papel: nas últimas semanas, servidores do órgão fizeram protestos em várias cidades e ameaçaram entregar os cargos.
Na Polícia Federal, Saadi já tinha dito que gostaria de deixar a Superintendência do Rio — porém, isso só aconteceria no fim do ano. A pressão do Palácio do Planalto acabou acelerando as coisas, e ele foi convidado para ocupar um cargo a ser criado na Holanda.
*Colaborou Laís Alegretti, da BBC News Brasil em Londres