'Acostumados à barbárie': Pesquisadora de Oxford alerta para risco de normalização de incêndios na Amazônia

Bióloga Erika Berenguer afirma que mesmo com aumento de registros de queimadas e desmatamento em alta, destruição da Floresta Amazônica não recebe a devida atenção.

25 set 2020 - 09h41
(atualizado às 12h23)
Fogo e desmatamento na Amazônia causam preocupação em todo o mundo
Fogo e desmatamento na Amazônia causam preocupação em todo o mundo
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Um grande risco para a Amazônia nos próximos anos é a normalização dos incêndios no bioma, alerta a bióloga brasileira Erika Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, ambas no Reino Unido.

A especialista, que estuda os impactos do fogo na Amazônia, ressalta que neste momento as atenções sobre as queimadas estão voltadas para o Pantanal, que enfrentou a seca mais intensa das últimas décadas e o pior período de incêndios em sua história recente.

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Apesar de reforçar a importância de se falar sobre a situação do Pantanal e de cobrar ações rápidas das autoridades para a região, Berenguer pontua que não se deve esquecer dos problemas vividos na Amazônia.

"É muito perigoso normalizar a situação na Amazônia e não se chocar mais, tratar simplesmente como coisa de rotina", diz a pesquisadora.

Bióloga estuda os impactos do fogo na Floresta Amazônica
Foto: Marizilda Cruppe/Rede Amazônia Sustentável / BBC News Brasil

Os registros de focos de calor (que costumam representar incêndios) na Amazônia em 2020 superam os do mesmo período nos dois últimos anos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

De janeiro a esta quinta-feira (24/9), foram registrados 72,2 mil focos de calor, conforme o Inpe. Somente nas duas primeiras semanas de setembro, os números de incêndios na Amazônia cresceram 86,1% em comparação ao ano passado. Enquanto em 2019 foram registrados 11 mil focos de calor, neste ano foram 20,4 mil.

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Estudos apontam que o fogo que atinge o bioma está diretamente relacionado ao desmatamento.

Entre 2000 e 2018, a Amazônia perdeu 269,8 mil km de florestas — área superior, por exemplo, à extensão do Reino Unido. Segundo esse dado, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cobertura florestal da área total do bioma caiu de 81,9% para 75,7%, em 18 anos. Pouco mais da metade das alterações da terra foi para converter áreas em pastagem.

No governo Jair Bolsonaro, o desmatamento na região atingiu níveis preocupantes, segundo levantamentos. Em julho do ano passado, 2.255 km² do bioma foram desmatados, recorde desde 2015. No mesmo mês, em 2020, foram 1.658 km² da floresta, segundo o sistema Deter, do Inpe.

Erika Berenguer é pesquisadora das universidades de Oxford e Lancaster, ambas no Reino Unido
Foto: Adam Ronan/Rede Amazônia Sustentável / BBC News Brasil

"Antes do governo Bolsonaro, a gente só teve um mês com mais de mil km² desmatados desde 2015, em agosto de 2016. Depois do começo da gestão dele, esse número se tornou comum", diz a pesquisadora.

O desmatamento na Amazônia já passou de mil km² em seis meses, desde o início do governo Bolsonaro. Os dados são do sistema Deter, que há cinco anos analisa o desmatamento na floresta tropical mensalmente.

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"Os levantamentos apontam que há uma grande proporção da área desmatada no ano passado que foi queimada somente neste ano. Esse é um dos possíveis motivos para justificar o aumento do fogo em 2020, em comparação ao ano passado", diz Berenguer.

'O desmatamento está virando normal'

Em 2019, houve um grande movimento em defesa da Amazônia. "A sociedade civil organizada fez uma mobilização, principalmente após o mês de julho, quando foram desmatados mais de 2 mil km² a floresta", comenta a especialista.

Porém, Berenguer afirma que neste ano não notou a mesma reação diante dos incêndios e do desmatamento intenso no bioma. "O problema é que parece que muitos passaram a aceitar e normalizar as queimadas e o desmatamento na Amazônia. Tenho a impressão de que as pessoas sabem que as coisas não estão muito bem (no bioma), mas não entendem a real dimensão do quanto as coisas estão ruins", declara.

"A gente está vendo picos de desmatamento que eram raríssimos alcançar. Parece que isso tá virando normal", diz a especialista.

Berenguer avalia que há pouca repercussão sobre o fato nas redes sociais e as autoridades optaram por focar no Pantanal. "É como se tivessem se acostumado com a barbárie. Essa normalização diminui a pressão em órgãos que deveriam estar fiscalizando. Uma sociedade anestesiada diante desse cenário acaba não fazendo pressão para que essa tendência do desmatamento e queimadas mude", declara.

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"É inaceitável termos mais de mil focos de calor por dia e mais de mil quilômetros quadrados desmatados com frequência. É inaceitável", declara.

Queimadas no Pantanal bateram recorde histórico neste ano e causaram repercussão mundial
Foto: Reuters / BBC News Brasil

A cientista ressalta que, além do aumento de queimadas no Pantanal, a pandemia do coronavírus pode ter colaborado para diminuir a reação ao problema na Amazônia.

"Mas percebo que o fato talvez não tenha ganhado muita atenção neste ano porque não teve um dia negro em plena tarde de São Paulo", diz, em referência a 19 de agosto do ano passado, quando partículas de incêndios, associadas a uma massa de ar frio, fizeram "o dia virar noite" na capital paulista.

Desmonte de órgãos de fiscalização

Um motivo para o aumento de incêndios e desmatamento, aponta Berenguer, é o desmonte feito pelo governo Bolsonaro a órgãos de fiscalização ambiental. A especialista salienta que o fato transmite a sensação de impunidade.

Mesmo com o atual cenário de queimadas, o governo cortou recursos do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

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De acordo com uma reportagem da Folha de São Paulo, o Ibama teve corte de 4% para o próximo ano. O instituto terá recursos de R$ 1,65 bilhão — destes, R$ 513 milhões dependem de aprovação do Congresso.

Ainda segundo a mesma reportagem, o corte de verba no ICMBio foi correspondente a 12,8%. A entidade terá, no próximo ano, R$ 609,1 milhões — destes, R$ 260,2 milhões estão sujeitos a aprovação do Congresso.

Além do desmonte, Berenguer aponta que críticas do governo Bolsonaro ao Inpe tentam desacreditar os dados do Inpe. "Preferem culpar o mensageiro, em vez de se preocupar com a mensagem", diz a pesquisadora.

O discurso de Bolsonaro

Um dos principais fatores para que os incêndios na Amazônia sejam normalizados, segundo a cientista, é a postura de Bolsonaro em relação ao meio ambiente.

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Um exemplo, aponta a pesquisadora, foi o discurso do presidente na Assembleia Nacional da Organização das Nações Unidas (ONU), na terça-feira (22/9).

Em vídeo apresentado na cerimônia, Bolsonaro disse que o Brasil é vítima de "uma das mais brutais campanhas de desinformação", ao se referir às notícias que citam o descaso dele com o meio ambiente.

Segundo o presidente, a Floresta Amazônica é uma área úmida, que não permite a propagação do fogo. "Os incêndios acontecem praticamente, nos mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas", disse Bolsonaro.

As afirmações de Bolsonaro durante seu discurso na ONU têm pouco ou nenhum respaldo. Sobre as áreas atingidas pelos incêndios na Amazônia, especialistas nacionais e internacionais têm afirmado que as queimadas frequentes no bioma contribuem para o fenômeno da degradação, que avança em toda a região e deixa a floresta mais seca e vulnerável aos incêndios.

Estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) revelam que a alta nos incêndios está diretamente relacionada ao desmatamento. "Não existe fogo natural na Amazônia, porque ela não evoluiu com o fogo", declara Bereguer.

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"Os estudos já apontaram que os incêndios em terras indígenas ou causados por caboclos foram minoria. Isso desmente os argumentos do presidente", diz a bióloga.

Em entrevista à BBC News Brasil, na terça-feira (23/9), o pesquisador Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, ressaltou que monitoramentos do Inpe e da agência especial americana, a Nasa, mostram que mais de 80% das queimadas na Amazônia são causadas por grandes propriedades.

"É o famoso e tradicional processo de expansão da área de agropecuária", declarou Nobre.

Em meados de julho deste ano, o governo federal publicou um decreto em que proibiu queimadas em todo o território nacional por 120 dias. A medida, porém, é considerada ineficaz por especialistas, pois não há intensa fiscalização.

O governo federal afirma que tem tentado combater o fogo na floresta por meio do emprego de militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), realizadas pelas Forças Armadas na região amazônica — a medida teve início no ano passado, após intensa pressão sobre as queimadas no bioma.

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Berenguer destaca que as ações adotadas no combate aos incêndios na Amazônia são insuficientes. "Mesmo com o incômodo e toda a pressão internacional que o governo federal sofre com o desmatamento e as queimadas, a gente não vê medidas efetivas que mudem a situação. Os números comprovam que as coisas não melhoraram em comparação ao ano passado", declara.

Para a bióloga, o discurso do presidente reforça a normalização dos problemas enfrentados pela Amazônia e pelos outros biomas brasileiros.

As consequências das queimadas e do desmatamento

A pesquisadora de Oxford comenta que há diversos problemas que podem ser causados pelas queimadas e pelo desmatamento na Amazônia.

Ela explica que uma área atingida por um incêndio nunca mais volta a ser como antes. "Na Amazônia, logo após o fogo há uma perda de 50% das árvores, que morrem porque possuem cascas finas."

"Mas os impactos não são apenas imediatos. Há um estudo, ainda em fase de revisão, que aponta que há um excesso de mortes em árvores, por causa do fogo, nos primeiros três anos após o incêndio", detalha a bióloga.

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Depois de ser afetada pelo fogo, a floresta é tomada por clareiras, que facilitam a entrada de sol e vento e deixa a área mais seca. "Várias árvores não conseguem rebrotar nesses ambientes extremos, muito quentes. Por isso, começam a nascer árvores pioneiras, que crescem rápido em qualquer lugar", explica a bióloga.

Entre as consequências da alteração das árvores no local estão, por exemplo, menos armazenamento de carbono — porque as árvores pioneiras costumam ser mais finas e guardar menos carbono em seus troncos — e prejuízo à fauna local, pois costuma haver menos frutos disponíveis na região.

Berenguer comenta que, com a normalização dos incêndios e do desmatamento, pode haver um ponto em que a floresta perca a capacidade de se regenerar. "Quando você queima uma área mais de uma vez, ela fica totalmente descaracterizada. A cada vez em que é queimada, ela fica mais diferente do que já foi um dia, até o momento em que pode não conseguir mais se recuperar", diz a especialista.

A população sente as consequências dos incêndios de diferentes formas. Uma delas é por meio do aumento de internações por problemas respiratórios — situação que se torna comum em períodos de queimadas nos Estados da Amazônia Legal.

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"Além disso, a Amazônia tem um papel fundamental de combater as mudanças climáticas, porque é um grande reservatório de carbono. Mas quando há o desmatamento, esse carbono é queimado, aumentando a quantidade de gases de efeito estufa na atmosfera e colaborando para acelerar as mudanças climáticas", detalha Berenguer.

A pesquisadora frisa que os incêndios afetam também a capacidade da floresta levar chuva a outras regiões do país. "Um dos papéis mais importantes da Amazônia, para o Brasil, é a geração de chuva. Ela bombeia água do solo, por meio de suas árvores, para a atmosfera, gerando os famosos "rios voadores", que levam chuvas a regiões como Centro-Oeste e Sudeste. Essas precipitações são fundamentais, por exemplo, para a sobrevivência do agronegócio e para as nossas hidrelétricas", diz a estudiosa.

"Além disso, a Amazônia é a floresta mais biodiversa do mundo. Há uma série de compostos que podem ser descobertos ali (para diferentes finalidades), mas que podem nunca ser encontrados, caso a floresta seja derrubada", declara.

Ao avaliar o atual cenário das queimadas no Brasil, Berenguer pontua que um risco para o próximo ano é que os incêndios no Pantanal, mesmo que permaneçam com altos índices como nos últimos meses, sejam normalizados, da mesma forma que ela tem notado em relação à Amazônia atualmente. "Não podemos passar a aceitar isso em nenhum lugar. Precisamos estar atentos. É uma situação que precisa ser combatida", declara a pesquisadora.

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