Uma camisinha passa boiando. Mais à frente, a cabeça de uma boneca esbarra lentamente num saco de lixo antes de continuar seu trajeto. Próximo ao córrego, antes mesmo de notar o cachorro flutuando, o cheiro forte anuncia que há animais em decomposição nas ruas da Vila Itaim e da Vila Aymoré, no extremo leste da cidade de São Paulo.
Pelo menos sete ruas dos bairros localizados em São Miguel Paulista estão embaixo d'água há mais de um mês. O mau cheiro causado pelo excesso de lixo e animais mortos embrulha o estômago até mesmo dentro das casas. Quem vive no local não consegue sair de casa sem afundar o pé na água suja do rio Tietê.
Eles são obrigados a passar por isso para trabalhar, comprar pão ou levar o filho na escola. E fazem isso sem nenhuma proteção. De chinelos ou mesmo descalços, caminham pelo alagamento sem ter ideia de onde estão pisando.
Nesta semana, a reportagem da BBC News Brasil visitou o local e conversou com dezenas de moradores, que relataram ter contraído várias doenças diferentes - como leptospirose, dengue e hepatite - por conta da água represada no bairro em períodos chuvosos há pelo menos dez anos. Entre os sintomas manifestados, estão infecções, febre, diarreia e vômito.
Nos 50 primeiros dias de 2019, 9.368 moradores da região receberam atendimento médico. Entre eles, 147 estavam com diarreia.
De chinelos e empurrando uma bicicleta com a água na altura das canelas, o pedreiro Edno Donizete Mioci de Paula, de 54 anos, diz à reportagem que contraiu leptospirose - transmitida por urina do rato.
"Eu peguei leptospirose, por isso eu evito pisar nessa água. Fiquei quatro dias internado e consegui escapar, mas algumas pessoas pegaram a (leptospirose) hemorrágica e morreram. Quando está cheio assim, não dá nem para levar as crianças na escola ou sair para trabalhar porque preciso carregar material (no carro). A água do esgoto está retornando para nossas casas, mas parece que não se importam com isso", afirmou.
A poucas ruas dali, Ilza Maurício, de 57 anos, mora tão perto da várzea do rio Tietê que as roupas estendidas no quintal dela pingam sobre a água barrenta e cheia de lixo que invade os fundos do imóvel. Ela conta que já teve hepatite, problemas de garganta, micose e frieiras - que demoraram para curar.
Apreensiva, ela lembra que alguns de seus vizinhos morreram de leptospirose nos últimos anos e relata que sente medo de contrair doenças mais graves.
"A gente tem contato com a água o tempo todo, fica com a enchente na altura do joelho. Não tem onde estender roupa. Demora meses para abaixar a água. Ninguém gosta de morar numa lagoa que nem sapo. A gente convive (com isso) porque não tem condições de sair", afirma.
Dona de um armazém a cerca de 30 metros do rio, Neusa Gomes da Silva, de 53 anos, mostra para a reportagem suas duas pernas inchadas, com manchas brancas e marcas de uma grave coceira. Ela está com uma infecção na perna causada pela enchente nos últimos anos. Ela não soube explicar qual é a sua doença, mas conta que quando chove e ela tem um contato mais frequente com a água suja, o problema se agrava.
Ela diz que já foi internada três vezes por conta de crises da infecção, que causa, além do inchaço, feridas e bolhas. Ela diz que sua única vontade é deixar o bairro e se livrar das enchentes.
"Me dá ânsia de vômito, desinteria e essa doença nas pernas. Eu tenho medo, mas ninguém pode fazer nada. Só penso em sair daqui para um lugar melhor", afirma ela.
Por outro lado, sua vizinha Daniela Bezerra da Silva, de 27 anos, não tem tanto medo de doenças, mas de ter sua casa carregada pelo rio Tietê durante uma tempestade. Na última semana, a força da água abriu um buraco no chão e causou rachaduras no quarto onde ela dorme com o marido.
"A gente estava deitado quando começou a fazer um barulho. Quando vimos, estava abrindo o chão e estava cheio de água dentro do quarto. Ficamos com medo, pegamos o colchão e dormimos na cozinha. Na última noite, nem dormi de tanto medo", afirmou.
A Prefeitura de São Paulo informou que cerca de 4,5 mil famílias da região receberam indenizações ou auxílio aluguel desde 2009, quando foi declarado estado de calamidade pública na região devido a um temporal. Desse total, 1,5 mil receberam moradias populares.
Risco de contaminação
Infectologistas entrevistados pela BBC News Brasil disseram que as doenças mais comuns em áreas alagadas são leptospirose e diarreia. Apesar de diversos moradores terem relatado casos de tuberculose, eles disseram que a doença é respiratória e transmitida de pessoa para pessoa, sem relação com as enchentes.
A presidente da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do instituto do Hospital das Clínicas, Thaís Guimarães, disse que a leptospirose pode ocorrer até mesmo em locais com água limpa.
"A leptospira (bactéria transmissora) penetra na pele e, dependendo do caso, pode levar a óbito. Já as diarreias infecciosas ocorrem pela ingestão de água contaminada, que se mistura com esgoto. Se você engole coliformes, tem grandes chances de ter diarreia infecciosas. O paciente tem febre, desidrata e pode até morrer", afirmou.
Para ela, porém, o ideal é que nenhuma pessoa estivesse nessa área. "Mesmo se ela tiver usando bota, a água pode entrar no calçado e, se ela não tiver cuidado e colocar a mão no alagamento, vai ter a mesma exposição. Essas pessoas deveriam ir para outros lugares, como abrigos. Não há qualidade de higiene em um local com tanta umidade e mofo", disse Guimarães.
Juvêncio Furtado, professor de Infectologia na Faculdade de Medicina do ABC, diz que os moradores devem seguir algumas recomendações para evitar a contaminação.
"O ideal é que os moradores da região só bebam água tratada. Eles devem ferver a água antes do consumo. O excesso de chuvas ainda pode formar criadouros de mosquitos e transmitir doenças como dengue e febre amarela", afirmou.
A Coordenadoria de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal Saúde de São Paulo (Covisa) ainda alerta que o contato com a água da enchente pode causar cólera, febre tifoide, hepatite A e E, entre outras doenças. A prefeitura pede para que elas procurem imediatamente uma unidade de saúde caso apresentem algum dos seguintes sintomas: febre e calafrios, diarreia, náuseas e vômitos, icterícia (olhos e pele amarelados), fezes claras, urina escura, ferimentos, fraqueza e cansaço, falta de apetite e sangramentos.
O município disse ter distribuído 6.351 frascos de hipoclorito de sódio para 700 famílias que vivem na região das enchentes para que eles usem o produto na limpeza das casas, dos alimentos e da água que bebem.
A prefeitura afirmou ainda que limpou outros dois córregos da região e que, no último ano, 2,9 mil toneladas de lixo foram retiradas do local. Desde 2010, foram retiradas mais de 2 mil carcaças de veículos das águas da região, conhecido como ponto de desova de carros roubados.
Por que a região fica tanto tempo alagada?
Principal córrego da região, o Itaim Paulista nasce na cidade de Ferraz de Vasconcelos (Grande SP), passa pelo município de Poá e entra na capital pelo Itaim Paulista, seguindo seu fluxo até desembocar no rio Tietê, em São Miguel Paulista.
O problema está justamente nesse ponto final, onde a água encontra uma barreira que fica represada nos bairros. Questionado, o governo disse que isso acontece "principalmente em razão da várzea do Tietê, com topografia plana típica da região".
Mas o líder comunitário Euclides Mendes, que vive no bairro há 48 anos, tem uma explicação mais detalhada.
"Na década de 1970, aqui funcionava uma mineradora que extraía areia da região. Ela fez um desvio irregular no rio e deixou uma cratera no local . Esse buraco encheu, a água ficou sem oxigenação, criou aguapé e mato e impediu o fluxo do córrego", disse.
Para ele, as medidas mais urgentes para acabar com os alagamentos constante seriam a limpeza do córrego, que acumula toneladas de lixo, e a construção de um pôlder - área protegida por diques para conter inundações. Mendes e outros moradores da região já pediram ajuda à Defensoria Pública, Ministério Público e aos governos municipal e estadual.
O último abaixo-assinado feito pelos moradores pedindo agilidade nas obras já reuniu mais de 2.700 assinaturas. O Governo de São Paulo informou à BBC News Brasil que a construção de um pôlder na região "é prioridade da atual gestão". A pasta disse que o processo de desapropriação de 145 imóveis, iniciado em dezembro de 2017, atrasou o cronograma. E diz que deve entregar a obra até o fim deste ano.
Enquanto as obras não saem, a prefeitura disse que 12 bombas e seis caminhões hidrojato foram disponibilizados em parceria com o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) para retirar a água acumulada da região desde o início dos alagamentos. A reportagem presenciou o trabalho de dois caminhões. Mas o volume de água é grande, não é possível concluir o trabalho em um dia e os moradores veem o trabalho como "enxugar gelo". Segundo eles, na primeira chuva, as ruas enchem novamente.
Bairro paralisado
Os bairros de Vila Itaim e Vila Aymoré têm uma população de baixa renda, com poucas opções de lazer. Com os alagamentos, as crianças que vivem na região perdem o principal local onde costumam jogar futebol, empinar pipa e brincar: a rua. Os comerciantes locais também sofrem um grande impacto nas vendas.
Dona de uma pequena mercearia que vende desde ovos a refrigerante e mantimentos como açúcar e feijão, Maria Aparecida da Silva, de 50 anos, prefere nem levantar a porta de aço do comércio.
"Eu não vendo praticamente nada. Salgadinho está tudo parado. Passo o dia inteiro e não vendo nem R$ 10. Quando não está alagado, aqui é cheio de gente. Hoje, ninguém consegue passar", disse.
Dentro de casa, os moradores também contabilizam os prejuízos. Com a experiência dos últimos anos, eles instalam barreiras de concreto e comportas nas entradas das casas para tentar impedir a entrada da água. Tudo em vão.
A água sobe muito acima do nível da barreira e a velocidade é tão grande que os moradores não conseguem levantar os móveis a tempo e acabam perdem boa parte do que têm. Para comprar tudo de novo, boa parte da renda familiar é comprometida, num ciclo anual de renovação.
Ao ouvir as primeiras gotas batendo no telhado, Hélia Maria Soares, de 78 anos, corre para juntar as cadeiras e engradados vazios de cerveja para colocar os móveis em cima. Na última semana, não adiantou nada. A água subiu mais de um metro.
"Eu tinha um rack, mas a enchente levou. Meu neto agora fez uma estante na parede. Ainda tenho duas parcelas para pagar desta cômoda, mas a água atingiu a parte debaixo e já foi. Quem não gosta de dormir com chuva? Aqui, a gente dorme com pavor porque acorda todo mundo", afirmou.
A situação do irmão dela, de 83 anos, é ainda mais complicada. Ele não consegue andar e depende de ser carregado nos braços pelos sobrinhos para o segundo andar do sobrado onde vivem sempre que alaga. Sem a ajuda, ele poderia morrer afogado. Na chuva desta semana, a água subiu acima da altura da cama dele e molhou até mesmo o colchão, que também deve ir para o lixo.
A família já tentou diversas estratégias para evitar a entrada da água durante as fortes chuvas, até mesmo construir muretas na porta de cada cômodo. Sem dinheiro para se mudar, a única esperança deles é a conclusão das obras que prometem acabar com as enchentes.
Ela relatou ter limpado toda a casa horas antes da enchente que ocorreu nesta semana. "Perdi meu tempo, perdi minhas coisas e graças a Deus não perdemos a vida. Para nós, não tem solução. Eles dizem que depois que a obra terminar, a gente não vai ter problema. Eu já não tenho esperanças".