"Com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, eu tenho o poder de fazer decreto", gabou-se em maio o presidente Jair Bolsonaro, ao relatar diálogo com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM -RJ).
Desde então, o que tem ficado cada vez mais evidente é que o presidente pode muito, mas não pode tudo. Nas últimas semanas, Bolsonaro sofreu derrotas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal, que barraram total ou parcialmente iniciativas importantes do governo, como os decretos que flexibilizam o acesso a armas ou a transferência da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura por medida provisória.
Sem base organizada no Congresso, o presidente também tem visto propostas caras a seus superministros empacarem. É o caso da tentativa de criar um sistema de capitalização para aposentadoria, capitaneada pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes.
O cientista político Rafael Cortez, sócio da Tendências Consultoria Integrada, considera que "os primeiros seis meses mostram um saldo maior de derrotas que vitórias para o governo". Segundo ele, isso reflete dois fatores: a escolha do presidente por não partilhar cargos e montar uma coalizão política, e a "retórica bolsonarista" de ataque à "velha política" e ao Supremo Tribunal Federal (STF), que acaba elevando a tensão com os outros Poderes.
"Congresso e Supremo têm tanta legitimidade quanto o Poder Executivo. Estamos vendo funcionar o sistema de freios e contrapesos da democracia. As derrotas de Bolsonaro são fruto das escolhas dele", afirma.
Apesar disso, Cortez ressalta que o governo também acumula algumas vitórias, principalmente na agenda econômica, onde há mais convergência entre a agenda do Planalto e as prioridades das principais lideranças do Congresso, Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. "A Reforma da Previdência (principal agenda do governo) sofrerá mudanças, mas deve ser aprovada", destaca.
Lara Mesquita, cientista política e pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da FGV, ressalta que nenhum governo consegue implementar totalmente sua agenda.
"O presidente tem muito poder no nosso sistema, mas não pode prescindir do Congresso, onde há um balanço de forças, com representação também de grupos minoritários. Democracia não é 'eu ganhei (a eleição presidencial) e levo tudo'", ressalta.
Confira a seguir as principais derrotas e vitórias de Bolsonaro nesses primeiros seis meses.
Principais derrotas
1) Decreto de armas
Pesquisas de opinião mostram que a maioria da população não apoia a flexibilização do acesso a armas, um indicativo de que uma alteração do Estatuto do Desarmamento sofreria resistência no Congresso. Grande entusiasta do armamentismo, Bolsonaro não quis nem tentar essa difícil negociação e optou por editar uma série de decretos com amplas mudanças na posse e no porte de armas. O primeiro saiu em janeiro, mas foi revogado em maio, com a edição de outros dois.
No dia 18 de junho, porém, o Senado rejeitou esses textos, que traziam pontos polêmicos como brecha para civis comprarem fuzis e ampliação da possibilidade de porte de armas para 22 categorias, incluindo políticos eleitos, advogados, guardas de trânsito, caminhoneiros, moradores de zonas rurais e jornalistas.
Prevendo a derrota também na Câmara, o que derrubaria as normas, o presidente revogou os dois decretos na terça passada e publicou outros quatros. O movimento também buscou evitar uma derrota no STF, que julgaria na quarta ações movidas por partidos (Rede, PSOL e PSB) questionando a constitucionalidade dos decretos.
No entanto, tão logo as novas normas foram editadas, parlamentares já se mobilizaram para rejeitar novamente as medidas no Congresso e freá-las no Supremo. O argumento é que o presidente pode apenas regulamentar a aplicação do Estatuto do Desarmamento por meio de decretos, não alterar substancialmente a lei.
Ao mesmo tempo, lideranças do Congresso tentam mostrar que não são 100% contra a agenda presidencial. O Senado aprovou na semana passada projeto de lei que estende os limites do direito a posse de arma para toda a propriedade rural (em vez de restringir à sede da fazenda). A proposta ainda será analisada na Câmara.
2) Decreto sobre informações em sigilo
Mesmo antes de exaltar os poderes de sua caneta, Bolsonaro já havia levado um cartão vermelho do Congresso. Um decreto de janeiro, que ampliava o rol de autoridades que poderia classificar documentos como secretos (15 anos de sigilo) e ultrassecretos (25 anos de sigilo), acabou rejeitado em fevereiro na Câmara.
Antes que o Senado confirmasse a decisão, Bolsonaro revogou a norma. Para os parlamentares, a medida reduzia o alcance da Leia de Acesso à Informação.
3) Demarcação de terras indígenas
Outra proposta cara à Bolsonaro que empacou foi a transferência da demarcação de terras indígenas da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura.
A primeira tentativa, por meio da Medida Provisória (MP) 870, foi rejeitada em maio. Na ocasião, o Congresso determinou que a demarcação retornasse à Funai, e que o órgão voltasse a estar subordinado ao Ministério da Justiça.
O presidente, então, surpreendeu ao enviar nova MP em junho determinando novamente que a demarcação fosse submetida à pasta da Agricultura. O problema é que a Constituição impede que uma medida provisória rejeitada seja reeditada no mesmo ano.
Por causa disso, o ministro do STF Luís Roberto Barroso atendeu pedido de PT, PDT e Rede e suspendeu o trecho da nova MP que alterava a demarcação, até o plenário da Corte julgar o caso em agosto. Logo depois, o presidente do Senado, David Alcolumbre, devolveu ao Planalto a norma.
4) Moro sem Coaf
Quando Bolsonaro oficializou a escolha de Sergio Moro para comandar a pasta da Justiça e Segurança Pública, anunciou que o então juiz assumiria um "superministério". A nova estrutura incluiria a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia para a pasta de Moro, com objetivo de dar ao ministro informações em tempo real para combate à corrupção e ao crime organizado.
Apesar de Moro insistentemente expor seu desejo pelo Coaf, a mudança, incluída também na MP 870, foi barrada pelo Congresso, numa aliança de parlamentares do Centrão (partidos de centro e centro-direita) e da oposição (partidos de esquerda).
O governo acabou desistindo de tentar impedir a derrota para manter outra mudança incluída na MP: a redução do número de ministérios de 29 para 22 pastas.
Outra iniciativa prioritária de Moro, o pacote anticrime com sugestões de alteração na legislação penal, tem andado lentamente no Congresso. No momento, um Grupo de Trabalho criado na Câmara por Rodrigo Maia analisa conjuntamente as propostas de Moro e outro pacote elaborado por uma comissão de juristas sob a coordenação do ministro do STF Alexandre de Moraes.
5) Reforma da Previdência sem regime de capitalização
O relator da Reforma da Previdência na Câmara, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), deixou de fora do seu parecer para a Comissão Especial que trata do tema proposta considerada crucial pelo ministro da Economia, Paulo Guedes - a criação do regime de capitalização, baseado na formação de poupança pelo próprio trabalhador no decorrer da vida ativa, em uma conta individual para financiar, no futuro, sua aposentadoria.
O governo planeja reintroduzir a proposta de capitalização quando a reforma for à votação, mas é improvável que seja aprovada. Críticos do modelo dizem que ele reduziria o valor das aposentadorias, levando a um empobrecimento dos idosos no país. Outro problema é o alto custo de transição do atual sistema de repartição, em que os trabalhadores da ativa bancam com suas contribuições os benefícios de quem já está aposentado, para o sistema de capitalização, em que os trabalhadores deixariam de contribuir para cobrir as atuais aposentadorias.
Guedes reagiu com irritação. "Aprovada a reforma do relator, abortaram a Nova Previdência. Mostraram que não há o compromisso com as futuras gerações, é o compromisso com servidores públicos do legislativo, que parece maior do que com as futuras gerações", criticou durante palestra no Rio de Janeiro.
6) Medidas Provisórias que "caducaram"
Com articulação precária no Congresso, duas medidas provisórias editadas no final do governo de Michel Temer e de interesse do governo Bolsonaro caducaram, ou seja, perderam a validade devido à lentidão na apreciação das propostas pelos parlamentares.
Medidas provisórias representam grande poder nas mãos do presidente, já que elas têm efeito imediato de lei e tramitam com prioridade frente outras matérias no Congresso. Porém, se não forem aprovadas em até 120 dias, perdem a validade e não podem ser reeditadas no mesmo ano.
No início desse mês, perdeu validade a MP 868, que atualiza o marco legal do saneamento básico e abre a possibilidade de privatizar empresas estaduais responsáveis pelo serviço. O governo decidiu, então, apoiar a tramitação de um projeto de lei sobre o tema.
"O prazo (para aprovar a MP) ficou muito em cima da hora por conta dos erros que aconteceram nos últimos dias na Câmara", reconheceu na ocasião a líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP).
Também caducou a MP 867, que ampliava o prazo para adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), inicialmente previsto para 31 de dezembro de 2018. A medida é de interesse da bancada ruralista, um dos pilares de apoio ao governo Bolsonaro. O presidente, então, editou outra MP este mês extinguindo o prazo para os proprietários de terra fazerem o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Com isso, ficou sem data limite também a adesão ao PRA.
Resta saber se o governo conseguirá aprovar a MP dessa vez. Para o analista político Rafael Cortez, recentes mudanças aprovadas no Congresso nos prazos de tramitação das medidas provisórias aumenta o risco de elas caducarem.
Antes, havia apenas o prazo global de 120 dias. Agora, com a emenda constitucional aprovada em junho, as MPs deverão tramitar em 40 dias em comissão mista de deputados e senadores, depois terão mais 40 dias para serem aprovadas na Câmara, mais 30 dias para aprovação no Senado e depois mais 10 dias para revisão pela Câmara, caso senadores façam alguma alteração no texto. Se qualquer uma das etapas não for cumprida, a norma perderá validade.
Principais vitórias
1) Aval para descumprir regra de ouro
Após uma certa tensão, o governo conseguiu em junho autorização do Congresso para contrair dívida de quase R$ 249 bilhões, valor necessário para cobrir despesas da administração pública como aposentadorias do INSS, Bolsa Família e crédito subsidiado a fazendeiros. A autorização era necessária porque a regra de ouro só permite a União de se endividar para cobrir despesas de investimento e financeiras.
Sem essa autorização, Bolsonaro teria que suspender despesas fundamentais, o que, segundo economistas, agravaria a crise econômica e geraria caos social. Caso não adotasse essa medida, poderia sofrer um processo de impeachment por descumprir a regra de ouro.
2) Autorização para privatizar subsidiárias estatais
Outra importante vitória foi o aval do STF para o governo privatizar subsidiárias de estatais (empresas controladas por outras companhias públicas) sem a necessidade de aval do Congresso.
Por outro lado, o Supremo determinou que a venda de estatais matrizes, como Petrobras, Eletrobras e Banco do Brasil, dependem de aprovação dos parlamentares.
Apesar dessa restrição, a medida abriu uma ampla janela para Bolsonaro realizar seu plano de reduzir o tamanho do Estado.
"Segundo o Supremo, 'as empresas mães' passam pelo Parlamento. Não deixou de ser um avanço, meus parabéns, meus cumprimentos ao Supremo Tribunal Federal que agiu com patriotismo", comemorou o presidente.
De acordo com o Ministério da Economia, o governo federal tem 134 estatais, das quais 88 são subsidiárias. A Petrobras, por exemplo, tem 36 subsidiárias, como a Transpetro e a BR Distribuidora; a Eletrobras, 30; e o Banco do Brasil, 16.
3) MP contra fraudes do INSS
A medida provisória 871, com ações para coibir fraudes nos benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), foi aprovada pelo Congresso no último dia antes de caducar.
Para evitar a queda da MP, o presidente do Senado convocou uma sessão extra em uma segunda-feira (3 de junho), dia da semana em que o Congresso não costuma funcionar.
A proposta foi anunciada com entusiasmo por Guedes, no intuito de mostrar que o governo estava adotando outras medidas de equilíbrio dos gastos do INSS, além da reforma da Previdência.
Bolsonaro usou o Twitter para agradecer a aprovação: "MP 871 APROVADA! Parabéns a todos os parlamentares que se empenharam na aprovação da Medida Provisória que combate fraudes no INSS e que gerará ao país economia de 100 bilhões em 10 anos".
4) Acordo Mercosul - União Europeia
Na sexta-feira, dois dias antes de Bolsonaro completar seis meses de governo, foi anunciado que a União Europeia e o Mercosul chegaram a um acordo comercial - após 20 anos de negociações.
Segundo estimativas do Ministério da Economia do Brasil, o acordo, saudado como "histórico", representará um incremento no PIB do país equivalente a R$ 336 bilhões em 15 anos, com potencial de chegar a R$ 480 bilhões, se forem levados em conta aspectos como a redução de barreiras não tarifárias.
Para Bolsonaro, "esse será um dos acordos comerciais mais importantes de todos os tempos e trará benefícios enormes para nossa economia".
Os números impressionam: ele envolve 25% da economia global e 780 milhões de pessoas - quase 10% da população do mundo.
Ainda não há informações detalhadas sobre os termos do acordo, que ainda será revisado e chancelado pelos países dos dois blocos econômicos. As complexas negociações envolvem diversas áreas, como marcos regulatórios, tarifas alfandegárias, regras sanitárias, propriedade intelectual e compras públicas.
Ele prevê remoção da maioria das tarifas de importação do Mercosul sobre produtos europeus, principalmente nos segmentos industrial, agrícola e alimentício.
Em nota, o Ministério da Agricultura brasileiro afirmou que produtos nacionais terão tarifas eliminadas, como suco de laranja, frutas e café solúvel, e exportadores terão mais acesso, por meio de quotas, a produtos como carnes, açúcar e etanol.
Para o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o acordo não foi concluído antes por falta de "determinação política" por parte do Brasil e do bloco sul-americano em "vários momentos chave".
"A grande diferença é essa, a determinação política do presidente Jair Bolsonaro", disse o ministro.