Para Luís Antônio Boudens, presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Jair Bolsonaro (sem partido) vem perdendo seu tradicional dos policiais brasileiros e deve chegar nas eleições de 2022 com a fidelidade da categoria comprometida.
Essa perda gradual de simpatizantes ocorre principalmente depois de a categoria ter sido incluída em uma proposta de congelamento de salários nos próximos anos. "Acredito que o presidente chega nas eleições 2022 com menos de 20% do apoio da categoria", disse Boudens, em entrevista à BBC News Brasil.
Nas últimas semanas, Boudens tem liderado, junto a outras associações de policiais, uma série de manifestações contra o governo Bolsonaro. O grupo forma a União de Policiais do Brasil (UPB).
Durante a entrevista, o policial também falou da preocupação da categoria com a morte de agentes por covid-19 diante do acúmulo de operações policiais autorizadas pela Justiça durante a pandemia.
Também comentou a falta de interlocução dos policiais federais com o deputado Eduardo Bolsonaro, que é escrivão da corporação e já defendeu a categoria em várias oportunidades. "Hoje não existe mais nenhuma conversa", diz.
Na entrevista, Boudens também se disse contrário à política do governo Bolsonaro de facilitar o acesso a armas de fogo. "Para o policial, uma população armada não é uma coisa boa", diz.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Como a covid-19 atingiu os policiais federais?
Luís Antônio Boudens - Já passamos da barreira de 1.300 infectados. Na ativa, somos 10.400 hoje. É um número bem expressivo, mais de 10%.
Tivemos o 7º óbito entre os policiais da ativa. Foi uma grande perda. Era um colega do Comando de Operações Aerotáticas, um grupo muito especial e importante, especializado em operações aéreas.
De aposentados, foram 16 óbitos e mais sete do quadro administrativo, que é a carreira de apoio.
BBC News Brasil - As mortes estão concentradas em alguma região?
Boudens - As primeiras mortes nós registramos no Pará, no Amazonas e Goiás. Esse colega, de ontem, é do Distrito Federal.
A maior parte é do Norte. Ou colegas que estavam em missão e contraíram a covid-19. Tivemos uma operação no Acre e vários policiais de Brasília voltaram infectados.
Quando a gente faz a reunião antes da operação, fomos alertados que alguns dos alvos da ação tinham covid. Até avaliamos com a gestão da PF se havia custo-benefício para a operação, se tinha urgência mesmo. Houve uma série de ações judiciais que a PF precisou cumprir nos últimos dois meses.
Isso causou um acúmulo de operações.
BBC News Brasil - Tivemos também a notícia da morte por covid do senador Olímpio, que apesar de não ser egresso da PF também era de uma base policial que apoiou a eleição de Bolsonaro. O que o sr. sentiu ao saber da morte?
Boudens - Houve muita comoção entre as polícias. Ele era um defensor extremo da segurança pública.
Desde a Reforma da Previdência, que não deu nenhum tratamento diferenciado aos policiais. O governo já mandou um pacote pesado inclusive para profissionais de saúde e da segurança pública.
O major Olímpio foi o primeiro a dar esse grito e chegou a rachar com o governo. Ele virou um crítico do governo.
Por conta dessas defesas públicas e como policial militar de São Paulo, ele ganhou muito prestígio entre nós. Foi um dia triste para todos.
Estávamos em uma reunião da União dos Policiais do Brasil quando recebemos a notícia. Fizemos uma oração. Todos os presidentes de entidades expressaram tristeza. Foi um baque para todo mundo, tristeza geral no meio da segurança pública.
BBC News Brasil - O sr. citou a União dos Policiais do Brasil. Ela ainda não tem a presença de policiais militares, o grupo mais próximo ao presidente Bolsonaro. O sr. acha que essa aproximação pode ocorrer?
Boudens - Temos vários restrições impostas pela Justiça em relação a manifestações de policiais. A preocupação é maior em relação a greves. Polícia fazer greve é uma situação descabida, não há uma repercussão boa na sociedade.
Quando policiais militares fizeram greves, como na Bahia e no Espírito Santo, a situação ficou caótica.
Os policiais militares estão agrupados em várias associações. Elas têm se mobilizado em Brasília contra projetos que prejudicam os policiais. Qualquer tipo de união para os militares é mais difícil do que as forças civis de segurança pública.
Já fizemos convites para que as associações entrem na UPB nesse momento. É uma união para uma causa que acreditamos ser muito justa. Nós sofremos demais com esses três projetos aprovados. O governo colocou todos em dificuldade: houve aumento de alíquota, fixação de idade mínima, diminuição do valor da pensão.
Hoje, o policial que vai ao combate não entra mais com aquele espírito que ele tinha antes. Nosso juramento diz para colocarmos nossa vida em risco para salvar os cidadãos. Se gente sabe que nossa famílias vai ficar descoberta, com diminuição do valor da pensão para 50% (do salário) para viúva ou viúvo e 10% para cada dependente. Nós entendemos que isso gerou desmotivação interna.
Você vai pro combate, ama o que faz, precisa de perfil, vocação. Mas também precisa ter uma segurança.
Acho que o governo pensou só na parte econômica. E nem tanto, porque os militares das Forças Armadas não sofreram com a reforma da Previdência, nem com a lei 173 de contenção de gastos e também a PEC 186. O governo na verdade fez um ajuste fiscal usando como mote o auxílio emergencial.
O acúmulo de prejuízos nessas três propostas foi muito grande. A UPB agora, com a inclusão dos PMs e suas representações nacionais, vai ter condição de fazer um combate maior na questão da PEC 32, que traz também algumas ameaças para o serviço público em geral e também para a segurança pública, que novamente não foi poupada. E novamente nós vemos as Forças Armadas sendo poupadas.
BBC News Brasil - No que a PEC afeta a vida do policial?
Boudens - O governo usou a estratégia do fatiamento das propostas para promover a reforma administrativa. Para fins de aprovação no Congresso, é uma boa estratégia. O governo começou com a PEC 32, que traz coisas importantes, inclusive com previsões parecidas com a PEC emergencial.
A questão de criação ou extinção de cargos por decreto, o fim da estabilidade no serviço público, o conceito de cargo típico de Estado, que nós discordamos que seja feito por projeto de lei, as carreiras de Estado deveriam estar definidas na Constituição federal para que não haja posteriormente muita discussão sobre isso.
O governo lançou a PEC 32 e já propõe que a fase de regulamentação será feita por diversas leis complementares. Então, nós achamos que o país vai viver um longo período de debates com cada um buscando se proteger.
A preocupação nossa é essa. O governo não conseguiu definir o que nós esperávamos: qual é a estrutura básica do Estado que o governo pensa. Por enquanto, só há uma preocupação extrema em reter parte da verba que é paga ao serviço público. E com muitas acusações até infundadas, exageradas do ministro da Economia. Ele chegou a falar numa reunião que colocou "uma granada no bolso dos servidores públicos". Já são três granadas.
Esse tipo de abordagem do ministro tem deixado os servidores e nós, os policiais em todo o Brasil, muito preocupados.
BBC News Brasil - Quando o sr fala 'o governo', o sr. está falando do presidente Bolsonaro, do ministro Paulo Guedes ou de ambos?
Boudens - De ambos. No início, na reforma da Previdência quando foi lançada, tivemos uma reunião com o presidente, a UPB esteve com ele. E ele nos deu várias garantias, reconheceu esse grupo como um grupo de apoiadores dele. Não as entidades, mas os policiais em geral.
Nós calculamos aqui entre 80 e 85% de apoio que ele teve entre as forças policiais. Esse apoio foi caindo ao longo do tempo justamente porque nós percebemos que o presidente da República, num dado momento, se rendeu à pressão do Ministério da Economia. O projeto originário é construído pela equipe do Paulo Guedes.
O presidente Bolsonaro não encara de frente o Ministério da Economia para contrapor dados exclusivamente financeiros ou que tenham a ver com a organização do Estado, ou a importância da segurança pública, dos servidores da saúde, dos trabalhadores da educação. Essas propostas não trazem essa mensagem clara. E quando chega no Congresso, o projeto é encaminhado pela Casa Civil, então, tem o carimbo do presidente. Não tem como o presidente se esconder disso.
O presidente se rende aos argumentos e à pressão do mercado, do Ministério da Economia. E acaba encaminhando para o Congresso. Temos uma bancada da segurança pública com mais de 300 componentes e quase 50 policiais. É um enfrentamento que acontece ali que o governo tenta reverter depois e não consegue. No caso da PEC emergencial, é muito difícil um deputado ficar contra uma PEC que está trazendo dinheiro para as pessoas em época de pandemia.
O presidente tem a culpa, sim. Ele deve assumir o protagonismo dessas propostas e encarar esse grupo que deu apoio para as eleições.
BBC News Brasil - Qual é o sentimento da categoria hoje em relação ao presidente? Se sente traída?
Boudens - Alguns grupos estão mais revoltados. Outro grupo, mais ligado aos policiais civis do Brasil, se sente traído. E o grupo dos militares se sente decepcionado. Mas tudo isso não é porque o governo pediu uma cota de sacrifício a todos.
O governo lançou propostas em que preserva os militares das Forças Armadas, que são em muito mais quantidade do que as forças de segurança pública do Brasil. Então, se a proposta era cada um dar sua cota, que todos os brasileiros, todos os trabalhadores dessem sua cota.
O nível de revolta é maior justamente por isso, porque nós percebemos que não foi um pedido geral de cotas para todos, houve uma preservação (de alguns grupos).
No caso de reforma da Previdência, ainda houve o absurdo de o governo encaminhar uma proposta de reestruturação, inclusive salarial, para os militares das Forças Armadas.
Se o objetivo era fazer um chamamento geral para enfrentar uma crise econômica no país, que fosse feito alcançando todas as categorias, todas.
BBC News Brasil - Mas o sr. acredita em paralisação da segurança pública?
Boudens - Acredito em movimentos mais crescentes agora e bem fortalecidos. É uma área de serviço essencial, nós não podemos parar. Mas caso o governo insista em prestigiar os militares, isolar os militares durante essas reformas, isolar esses grupos que ganham salários até maiores, Judiciário, Ministério Público...
Se continuar acontecendo isso e se o governo não der uma resposta clara sobre o tipo de Estado que quer, a tendência é intensificar.
Lógico que a gente vai fazer isso com responsabilidade, a gente quer chamar atenção do governo pra isso, mas não queremos sacrificar a população brasileira nessa pandemia, já é um sacrifício muito grande, já são muitas mortes.
Pensando nas eleições do próximo ano, esse apoio que houve ao presidente pode diminuir ou nem existir mais?
Eu acredito que vai sobrar muito pouco de apoio se o governo não começar a dar demonstrações muito claras de que entende de segurança pública e quer ouvir os profissionais de todo o Brasil.
O ciclo de trabalho da segurança pública vai desde o guarda municipal até o sistema penitenciário. Tem que cuidar de todo mundo. Se abandonar algum, o presidente vai fazer uma escolha que vai causar uma perda de apoio quase total. Desses 80%, hoje nós vemos que há cerca de 40% e até 2022, menos de 20%, eu acredito.
BBC News Brasil - Como policial, como o sr. avalia essa maior facilidade de acesso a armas defendido pelo governo Bolsonaro?
Boudens - Todo mundo espera de um policial que ele defenda as armas, que ele seja um armamentista. E isso não é verdade. Você, como policial, defender que o cidadão comum se arme é uma confissão de derrota. Para o policial, uma população armada não é uma coisa boa.
Eu, como agente público armado, deveria ser suficiente para manter a população em segurança, sem que ela precise se armar. Mas nós estamos presos a uma estrutura fracassada, falida, retrógrada.
BBC News Brasil - O deputado Eduardo Bolsonaro é integrante da PF. Existe alguma interlocução, alguma conversa com ele sobre as demandas da categoria?
Boudens - Existia no começo, mas hoje praticamente não existe esse apoio. E isso aconteceu muito após a reforma da Previdência quando ele, como policial federal e filho do presidente, de certa forma abandonou os policiais já naquela primeira proposta que nos atingia.
Há um afastamento. Eu mesmo tinha um relacionamento mais direto com ele no início do mandato dele, mas hoje há afastamento, hoje não existe mais nenhuma conversa. Tanto ele quanto o pai. Nós tínhamos um convívio bom, mas hoje esse relacionamento é praticamente zero.
Veja também: