Quando o tema é o processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff acolhido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ainda há mais dúvidas do que certezas.
Questões básicas como quais acusações a presidente terá de responder nesse processo ainda dividem a opinião de especialistas em Direito Constitucional.
Talvez em função disso, não é raro ouvir noções equivocadas, ou confusões, sobre o processo de impeachment.
Abaixo, a BBC Brasil esclarece três dessas confusões frequentes após consultar juristas contra e a favor do afastamento da presidente.
- A rejeição das contas de 2014 e a Lava Jato estão na raiz do impeachment
Quando aceitou a abertura do processo de impeachment, Cunha deixou claro que, no seu entendimento, a presidente não poderia ser afastada por "suposições" sobre sua conivência com atos de corrupção, nem por irregularidade cometida em 2014 - o que incluiria as chamadas "pedaladas fiscais" do ano passado (manobras contábeis que envolveriam o uso de recursos de bancos federais para maquiar o orçamento federal).
No entanto, há quem defenda que isso ainda pode mudar quando o tema for analisado por uma comissão de 65 parlamentares na Câmara dos Deputados. Ou seja, ninguém parece ter certeza a essa altura sobre quais acusações pesarão contra a presidente no processo.
Na realidade, o pedido de impeachment assinado pelo ex-petista Hélio Bicudo e pelos juristas Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal menciona uma gama de acusações contra Dilma.
Diz que a presidente seria responsável pelas "pedaladas", cita a rejeição das contas do governo de 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU), as investigações sobre as contas da sua campanha na Justiça Eleitoral, a corrupção na Petrobras e as relações de Lula - que segundo os denunciantes seria "indissociável" de Dilma - com a construtora Odebrecht, cujo presidente foi preso na Lava Jato.
No entanto, ao acolher esse pedido, Cunha fez uma "depuração" das acusações, separando o que é válido e o que não é válido para um processo de impeachment em seu entendimento.
"A despeito da crise moral, política e econômica que assola o Brasil, a gravidade institucional que representa o início de um processo por crime de responsabilidade demanda o apontamento de um ou mais fatos concretos, uma ou mais condutas específicas da presidente", escreveu o deputado.
"As acusações formuladas pelos denunciantes são gravíssimas, mas, por outro lado, é igualmente certo que muitas delas estão embasadas praticamente em ilações e suposições, especialmente quando os denunciantes falam em corrupção na Petrobras, dos empréstimos do BNDES e do suposto lobby do ex-presidente Lula (..) Não se pode permitir a abertura de um processo tão grave como o impeachment com base em mera suposição de que a presidente tenha sido conivente com atos de corrupção."
No documento em que acolhe o pedido de impeachment, Cunha também diz que, apesar de o TCU ter rejeitado as contas de 2014, a palavra final sobre o tema cabe ao Congresso - que ainda não se pronunciou.
Além disso, sobre atos cometidos antes do atual mandato - o caso das pedaladas de 2014 - ele defende: "Considero inafastável o artigo 86 da Constituição, o qual estabelece não ser possível a responsabilização da presidente por atos anteriores ao mandato vigente."
Para Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC, isso significa que, para evitar um impeachment, a presidente precisará se defender apenas das duas acusações, que, no entendimento de Cunha, podem de fato configurar "crime de responsabilidade", passível de impedimento. São elas:
1. Ter assinado, em 2015. seis decretos para abrir "créditos suplementares" da ordem de R$ 2,5 bilhões sem autorização do Congresso, em desacordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e ignorando as metas fiscais aprovadas pelo Congresso.
2. Ter continuado as "pedaladas fiscais" em 2015. A acusação específica é que, segundo demonstrações contábeis do Banco do Brasil do primeiro semestre do ano, o governo teria atrasado os repasses para pagamentos do chamado Plano Safra, que financia programas de agricultura familiar. Atrasos desse tipo, no entendimento do TCU, configurariam "empréstimos" de um banco público para o Tesouro, o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000.
Para Serrano, ambas as acusações são insuficientes para um impeachment. "A fundamentação de Cunha vincula a decisão sobre impeachment e essas questões são claramente menores", diz ele.
Juristas favoráveis ao impeachment, porém, discordam da interpretação de que só esses dois pontos serão analisados - e que, portanto, a Lava Jato e as contas de 2014 ficarão de fora do processo.
Para Dircêo Torrecillas Ramos, professor livre-docente pela USP e membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas, por exemplo, é possível que a comissão especial que analisará o pedido de afastamento da presidente na Câmara reconsidere as acusações descartadas por Cunha.
"Não faria sentido a opinião de um deputado valer pela de todos os outros. Por isso, a comissão pode decidir sim que as pedaladas de 2014 ou questões ligadas a Lava Jato podem ser consideradas", opina.
Ives Gandra, professor emérito da Universidade Mackenzie, concorda: "Uma vez aberto o processo, tudo pode ser discutido. Inclusive elementos novos, supondo, por exemplo, que tenhamos alguma informação nova em função da delação premiada de Delcídio do Amaral (líder do governo no Senado, preso na Lava Jato)."
- O processo de impeachment foi aberto porque Dilma perdeu popularidade
O processo não foi aberto porque Dilma perdeu popularidade, mas sim porque Cunha decidiu que deveria acolhê-lo nesse momento, embora os baixos índices de aprovação do governo provavelmente tenham ajudado a multiplicar os pedidos de impeachment - foram protocolados, na Câmara dos Deputados, 34 pedidos contra a presidente.
Mesmo quem apoia o impeachment reconhece que Cunha acabou tomando essa decisão para "revidar" contra o governo depois que deputados petistas decidiram apoiar o processo que pode levar a sua cassação na Comissão de Ética da Câmara. Para eles, porém, isso não invalida a decisão.
Serrano, da PUC, diz que, em teoria, os níveis de aprovação da presidente não deveriam afetar o andamento do processo de impeachment na Câmara.
"Afinal, nós não temos um sistema parlamentarista (onde o governo pode cair por perder apoio)", diz ele.
"Os congressistas, ao analisar o processo, deveriam se debruçar sobre as acusações específicas que estão sendo feitas contra a presidente e entender se são ou não base para impeachment de acordo com a Constituição", diz.
Na prática, porém, ele reconhece que não é isso o que acontece. "Cada deputado faz seus cálculos com base em seus interesses políticos, então a popularidade da presidente, como ela é vista pela população, acaba afetando o processo."
Para Ives Gandra, no Congresso o processo sempre é político. "Os argumentos jurídicos são o verniz da discussão, além de o que dá início ao processo. Mas a decisão acaba sendo política, por isso a opinião das ruas importa", defende.
- Se Dilma cair, Aécio assume ou são convocadas novas eleições
Se Dilma for impedida de continuar na Presidência, quem assume é o vice-presidente Michel Temer, do PMDB, que ocuparia o cargo até o fim do mandato, em 2018.
Se por qualquer razão Temer também fosse impedido, haveria duas possibilidades: se o mandato não tivesse chegado à metade, o presidente da Câmara assumiria interinamente e uma nova eleição seria marcada em até 90 dias; se já tivesse passado da metade, essa eleição seria indireta: senadores e deputados votariam para escolher um sucessor.
Nessas novas eleições, todos os partidos indicariam seus candidatos, que não precisariam ser os mesmos de 2014.
É um equívoco dizer que, no caso de um impeachment, Aécio Neves (PSDB), segundo colocado nas eleições do ano passado poderia assumir a presidência.
A única possibilidade de Aécio assumir seria se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidisse pela cassação da chapa de Dilma e Michel Temer na votação de 2014 - e ainda assim há quem discorde dessa opção.
O tribunal está analisando a possibilidade de terem ocorrido irregularidades nas contas de campanha de Dilma e Temer e há jurisprudência para que o segundo colocado assuma no caso da cassação da chapa vencedora: em 2009, após Jackson Lago perder o mandato, a segunda colocada na eleição estadual de 2006, Roseana Sarney, assumiu o governo do Maranhão.
Para alguns juristas, porém, por tratar-se da Presidência da República, o TSE poderia optar por convocar novas eleições nesse caso.