Ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero aponta "falência total da liderança" de Bolsonaro em meio à pandemia. Para ele, "anti-ministro" comanda política ambiental, e "seita lunática" influencia parte do Itamaraty.O Brasil é governado por um presidente que não está preocupado com as qualificações profissionais, talento e preparo cultural de seus ministros, tendo os interesses de sua família como foco, e nos meios diplomáticos mundiais, o país é hoje motivo de gozação. Essa é a opinião de Rubens Ricupero, que foi diplomata de carreira entre 1961 e 2004, representante do Brasil junto aos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra (1987-1991) e embaixador em Washington (1991-1993).
Ricupero foi também ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal no governo Itamar Franco e Ministro da Fazenda durante o período de implantação do Plano Real, em 1994. Atualmente, é presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e diretor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).
Em entrevista à DW Brasil, Ricupero comenta a maneira como o governo Jair Bolsonaro vem enfrentando a pandemia do coronavírus, potenciais consequências de críticas de aliados do presidente à China e a atual política ambiental brasileira, que afirma ser uma "catástrofe" comandada por um "anti-ministro".
Ricupero também aborda a forte presença das ideias de Olavo de Carvalho no Itamaraty, que define como "uma influência nefasta, vinda de uma seita lunática".
Em meio à atual pandemia, Ricupero aponta uma "falência total da liderança". "Nosso presidente não quis ver a realidade, acabou brigando com os ministros da Saúde. Isso enviou uma mensagem confusa à população [...] O Brasil está descontrolado e se tornou o pior exemplo internacional contemporâneo", afirma.
DW: Na última quinta-feira (18/06), o senhor divulgou uma carta aberta com outros oito ex-ministros do Meio Ambiente, na qual denunciam um "desgoverno" no país, afirmando que a gestão do presidente Jair Bolsonaro representa uma ameaça tanto à saúde e à vida de brasileiros em meio à epidemia de covid-19 quanto às instituições democráticas, aos povos indígenas e ao meio ambiente. Como avalia a atual política ambiental brasileira?
Rubens Ricupero: A política ambiental é uma catástrofe. O homem que está lá [Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente] não é um ministro, é um "anti-ministro". Ele foi convocado para destruir tudo o que os que vieram antes fizeram. O que está acontecendo, a destruição da Amazônia e os incêndios, é uma consequência direta dessa política do governo. Boa parte do que destrói a Amazônia e o Cerrado é, justamente, a produção de alimentos que são exportados para a Europa. Isso vai acabar produzindo consequências graves.
Que consequências poderão ser sentidas no curto prazo?
Muitos fundos de investimento já declararam estar examinando a situação brasileira e que, se não houver uma melhora, vão suspender investimentos por aqui. O governo até reinstalou o Conselho da Amazônia na vice-presidência, com o general Hamilton Mourão. Foi anunciado um plano contra o desmatamento, que seria um "ambientalismo de resultados", mas até agora não se viu nada além de intenções no papel. O anti-ministro continua no cargo, não há verbas nem ações concretas. O único resultado que se viu até agora foi o de destruição. E isso agravará ainda mais a imagem do Brasil no exterior.
Pessoas próximas ao presidente Bolsonaro não têm poupado críticas à China. Em que medida esses episódios podem prejudicar essa relação?
Isso mostra bem o caráter irracional da política externa do atual governo. Além disso, a China não é apenas o maior parceiro comercial do Brasil, mas cada vez mais nós dependemos da China. Em maio passado, as exportações do Brasil para os Estados Unidos tiveram queda de 43%, mas para a China aumentaram 35%. No período, do total que o Brasil vendeu para o mundo inteiro, 40% foram para a China. Não tem sentido hostilizar o país.
Até agora, a China tem revelado uma atitude de relativa autocontenção. Mas isso tem um limite. Se continuarmos a assistir a episódios insultuosos, é claro que a China vai ter um comportamento cada vez mais distante. E na primeira alternativa que surgir para o país se abastecer de grãos ou de carne, ele não hesitará em abandonar os supridores brasileiros.
Isso nos deixaria em situação muito delicada, porque o outro grande mercado para esses produtos é a União Europeia, que se mostra cada vez mais resistente a comprar do Brasil por conta da política ambientalista que já abordamos, que está destruindo a Amazônia. Se isso acontecer, o Brasil talvez se encontrará praticamente sem alternativas no mercado externo.
No primeiro ano do governo Bolsonaro, um dos assuntos mais polêmicos foi a possibilidade de um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), ser indicado ao posto de embaixador dos EUA. Como enxerga esse movimento de o governo federal indicar uma pessoa sem experiência comprovada na diplomacia? Fora isso, agora temos a indicação do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub para o Banco Mundial.
Lá atrás, o presidente já indicava o que viria: um governo com base nos interesses da própria família. Ele revela essa mesma inclinação com a indicação do Weintraub. As qualificações profissionais, talento e preparo cultural não significam nada. O que vale para ele é apenas a lealdade política e a mesma posição ideológica dentro dessa facção a que ele pertence.
No caso do Eduardo Bolsonaro, ele teve que desistir porque provavelmente o Senado Federal rejeitaria a indicação. No caso do Weintraub, temos uma situação semelhante. No início, Bolsonaro cogitou indicar o ex-ministro para uma embaixada, mas ele sabia que no Senado Weintraub seria rejeitado, então acabou encontrando esse posto que não depende de aprovação interna.
Todas essas escolhas revelam uma visão que não tem relação alguma com o interesse nacional, pois esses postos devem representar não apenas o interesse do governo, mas do país como um todo. É inadequado nomear, em um caso, o filho que não tem nenhum preparo especial para isso, e, no outro, uma pessoa que se define como militante. São pessoas desqualificadas para esses cargos. E isso contamina toda a política externa. É uma visão completamente alucinada.
Temos hoje no Itamaraty diversas pessoas que não escondem a influência de Olavo de Carvalho em sua formação cultural. Como essa presença do "olavismo" influencia nossas relações internacionais? Como está o clima no Itamaraty?
O clima no Ministério [das Relações Exteriores] é muito negativo. A maioria dos diplomatas, diria que mais de 90%, é contra essa orientação. Há uma minoria que apoia e se divide: em um grupo, há os carreiristas tradicionais, que aderem a qualquer governo apenas porque têm interesse em fazer carreira, mas não acreditam em nada; e um grupo ínfimo de pessoas como o Ernesto Araújo, influenciados pelas ideias do Olavo de Carvalho. É uma influência nefasta, vinda de uma seita lunática.
Nas últimas semanas, a Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, promoveu vários seminários com indivíduos dessa tendência, figuras que ninguém conhece no Brasil e que sustentam teses completamente absurdas, de que a terra é plana e de que a pandemia é uma conspiração chinesa, por exemplo. É uma pena que o Ministério do Exterior se veja contaminado por esses fanáticos.
Nos meios diplomáticos mundiais, o Brasil hoje é motivo de gozação, é uma piada. O que ocorre aqui é pior do que o que ocorre nos EUA. Não tem nenhum paralelo com nenhum outro país. Na verdade não há nação que esteja em situação tão inacreditável quanto a nossa.
O presidente afirmou que, passada a epidemia do coronavírus, estudará a saída do Brasil da Organização Mundial da Saúde (OMS). O que representaria esse movimento?
Seria um absurdo. O Brasil foi um dos fundadores da organização. Um dos primeiros grandes diretores da OMS foi um médico brasileiro, o doutor Marcolino Gomes Candau, que ficou no cargo de 1953 a 1973. E o Brasil sempre teve uma relação muito próxima com a agência. Caso o governo tente, de fato, levar adiante essa ideia, penso que o Congresso deveria impedir. Da mesma forma que para entrar em uma organização o Congresso precisa aprovar, para sair a mesma lógica deveria se impor. Uma ação dessas afetaria o Brasil como um todo, e não apenas o Poder Executivo.
Dados citados pelo senhor já demonstram queda no comércio com os EUA. Isso nos leva à outra questão: quais os impactos de um alinhamento total e irrestrito do atual governo com a gestão Trump?
Esse alinhamento é mais com a pessoa do Trump do que com os EUA. Tanto isso é verdade que se o Trump perder as eleições em novembro, como parece possível pelas pesquisas de opinião atuais, ficaremos em uma situação bastante difícil, porque os democratas e o próprio Joe Biden são muitos críticos ao governo brasileiro. O Biden já fez declarações duras sobre o desmatamento e os incêndios na Amazônia. E há duas semanas, deputados democratas da Comissão de Orçamento e Tributos da Câmara dos EUA se opuseram a um acordo comercial com o Brasil.
Além do mais, não há muita lógica em buscar esse estreitamento tão forte de relações com os EUA porque a estrutura do comércio exterior brasileiro é muito concentrada no agronegócio. E nessa área os americanos são nossos concorrentes; os EUA não abrem mercado para nós. Os mercados para nós são União Europeia, China, Japão e países asiáticos em geral. Isso não faz nenhum sentido, trata-se apenas de uma elucubração devido à ideologia.
O Itamaraty também tem demonstrado apoio incondicional a Israel. Recentemente, o governo votou de forma contrária a uma resolução da ONU para reconhecer o direito internacional em territórios ocupados da Palestina. Em que essa aproximação com Israel ajuda o Brasil?
Essa política é uma consequência da pressão de um setor dos evangélicos. Há um setor evangélico que tem essa postura um pouco utópica de acreditar que Israel é uma espécie de encarnação do ideal religioso deles. Aí, apoiam medidas como a transferência da Embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém, que o governo chegou anunciar e depois não executou. Essa política que abandonou a postura de equidistância, de equilíbrio, que tínhamos antes, é muito prejudicial, pois aliena todo o mundo árabe e muçulmano - e nesse mundo estão importadores relevantes dos produtos do agronegócio brasileiro, como Egito, Arábia Saudita e Irã. Ao adotar essa posição, o Brasil mais uma vez prejudica os seus próprios interesses comerciais.
Segundo a revista Veja, o ministro Ernesto Araújo estaria articulando com o Ministério da Economia para derrubar as regras que proíbem a contratação de assessores no Itamaraty que não sejam da carreira diplomática. Quais os impactos para o Itamaraty?
Seria um golpe muito grave, porque o Itamaraty, há muitos anos, tem sido uma das raras exceções do serviço público brasileiro. Foi um dos primeiros que se profissionalizou, no qual o ingresso passou a ser exclusivamente na base do concurso, do Instituto Rio Branco. Isso há mais de 70 anos. Desde então, a lei que criou o Itamaraty não permitiu outros tipos de ingresso. É claro que nada impede que se possa solicitar alguma contribuição técnica de especialistas na base de consultoria, mas não são cargos permanentes.
Mais grave ainda é o fato de que essa manobra visa, sobretudo, nomear um cidadão, que, embora tenha pai brasileiro e mãe americana, nunca viveu aqui, chamado Gerald Brant. É um empresário ligado ao Steve Bannon, espécie de Olavo de Carvalho americano. Seria um absurdo colocar no próprio coração do Itamaraty, onde os assuntos mais importantes da política externa brasileira são tratados, um estranho. Acho isso violador à própria soberania brasileira. Se isso acontecer, acredito que haverá uma reação grande, até em matéria de ações junto ao Supremo Tribunal Federal, porque vai contra a própria Constituição Federal.
EUA e Europa fecharam fronteias para brasileiros em meio à atual pandemia. O que perdemos ao sermos visto como um país incapaz de controlar a covid-19?
No caso brasileiro, deve-se muito a uma falência total da liderança. Nosso presidente não quis ver a realidade, acabou brigando com os ministros da Saúde. Isso enviou uma mensagem confusa à população, já que os governadores e prefeitos têm outra postura. E o resultado é esse: não são só os EUA e países da Europa, mas nossas nações vizinhas, viraram as costas para nós. Os três presidentes do Mercosul - Argentina, Uruguai e Paraguai - já fizeram declarações públicas de que estão preocupados e enxergam o Brasil como uma ameaça. Eles estão lutando para controlar a doença, mas o Brasil está descontrolado. O Brasil se tornou o pior exemplo internacional contemporâneo.
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