De um lado, a Operação Lava Jato fez proliferar as acusações de operações milionárias de caixa 2 (repasses para fora da contabilidade oficial) contra os mais diversos políticos e partidos. De outro, numa aparente reação as essas denúncias, acumulam-se também declarações de autoridades minimizando a gravidade dessa prática.
Nas últimas duas semanas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, e o ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardozo (PT) concordaram num ponto: caixa 2 e corrupção são coisas diferentes.
Em entrevista à BBC Brasil, Mendes disse inclusive que a prática do caixa 2 pode ser, em alguns casos, apenas uma opção das empresas para manter suas doações desconhecidas e evitar achaques por outros políticos. Por causa disso, seria preciso "desmistificar a prática".
Em meio a essa discussão, fica a pergunta: o caixa dois é algo menos grave do que se pensa?
Primeiramente, é preciso esclarecer que o caixa 2 eleitoral, mesmo que não esteja associado a outros atos ilícitos, já é crime. Sua prática pode ser punida com até cinco anos de prisão segundo o artigo 350 do código eleitoral.
Se for considerado "abuso de poder econômico", ou seja, algo que interferiu indevidamente no resultado da eleição, pode também levar à cassação do mandato político.
"O caixa 2 é uma irregularidade autônoma. Para você punir o caixa 2, você não precisa provar a origem (ilícita) daquele dinheiro, porque ele é ilícito por si só. Afinal de contas, quem está usando caixa 2 para se bancar está violando primeiramente a democracia", afirma a procuradora Silvana Batini, professora de direito eleitoral da FGV-Rio.
"Quem pratica o caixa 2 está sendo desleal com os outros concorrentes e está sendo pouco transparente com seus eleitores. Isso viola o princípio da isonomia, do equilíbrio, da normalidade, da legitimidade das eleições", disse ainda.
A opinião é semelhante a do jurista Luiz Flavio Gomes, ex-juiz de direito e hoje presidente do Instituto Avante Brasil.
"A gravidade desse crime está nas suas consequências. É também um crime à democracia. O caixa 2 desiguala os candidatos. Quem tem caixa 2 tem dinheiro por fora e pode então vender sua imagem para muito mais gente. Os outros candidatos ficam numa desvantagem imensa", afirma.
O caixa 2 encobre outros crimes?
Além do impacto eleitoral, porém, a doação de campanha sem registro na Justiça Eleitoral serve também para encobrir outros crimes, acredita Batini.
Na sua opinião, esse tipo de prática pode ser usada pela empresa para repassar recursos não declarados à Receita Federal e assim driblar a cobrança de impostos. Ou então pode ser adotada para ocultar a origem ilícita dos recursos, por exemplo com obras superfaturadas, prática de cartel ou corrupção.
Do ponto de vista do candidato, diz Batini, o caixa 2 pode atender o interesse em aplicar o recurso em práticas ilegais de campanha, como compra de votos, ou mesmo desviar para enriquecimento pessoal.
"Não existe caixa 2 inocente. Um recurso clandestino só é clandestino para atender a um interesse, de quem está doando ou de quem está recebendo", afirma.
Ela observa que, até a eleição de 2014, não havia limite para os candidatos receberem doações oficiais, já que eram os próprios que indicavam qual seria seu teto. As empresas, por sua vez, podiam doar até 2% do seu faturamento, um valor alto na prática. Apenas em 2015 o Supremo Tribunal Federal proibiu o financiamento empresarial de campanhas.
"Se a doação era permitida, mas precisava ter caixa 2 e isso era tão usual é porque estava atendendo ao interesse ou de quem doava ou de quem recebia", reforçou.
Para Batini, é importante criar uma lei mais detalhada prevendo punições mais ou menos graves para diferentes situações de caixa 2. Isso permitiria que o crime fosse julgado pela Justiça comum. Na sua opinião, a Justiça Eleitoral não tem estrutura adequada ou suficiente para punir e combater essa prática.
Esse entendimento, porém, não é unânime. Para a advogada criminalista Heloisa Estellita, especialista em direito penal empresarial e professora da FGV-São Paulo, não é possível inferir que por trás do caixa 2 necessariamente exista outro crime.
Ela diz que a legislação brasileira já permite punir o caixa dois e atos de corrupção ou sonegação. Na sua avaliação, uma nova lei não vai solucionar o problema, sendo mais importante aumentar os investimentos em órgãos de fiscalização, como a Receita Federal e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).
"Você pode usar dinheiro que não está contabilizado numa empresa para fazer várias coisas. Isso em si mesmo não tem significado nenhum", afirma.
"Caixa 2 e corrupção, esse vínculo não existe. É acidental. Então, ao criminalizar o caixa 2 por si, eu não estou combatendo com isso a corrupção. Se eu punir o caixa 2 por si, eu não estou punindo a corrupção", destacou.
Para Estelitta, criar novos tipos penais "é uma solução falaciosa".
"Eu sou contra criminalizações desnecessárias. Para dar resposta à corrupção, à lavagem de capitais, é desnecessário criminalizar o caixa 2 em si porque já temos resposta penal satisfatória para esse fenômeno, via crimes tributários, via punição da corrupção e da falsificação de documento", acrescentou.
Odebrecht
Se de um lado, o Ministério Público tem defendido uma nova lei para criminalizar o caixa 2, de outro, políticos têm se movimentado para tentar aprovar a anistia (perdão) a esse crime.
Após essa ideia fracassar no ano passado devido à forte reação contrária da opinião pública, a discussão voltou aos bastidores de Brasília conforme aumentam as denúncias dentro da operação Lava Jato.
Trechos vazados dos acordos de delação de executivos da Odebrecht revelam repasses ilícitos para inúmeros políticos, de diferentes partidos, entre eles os três maiores do país: PMDB, PSDB e PT. Todos negam ilegalidades.
"Isso (caixa 2) sempre foi o modelo reinante no país", afirmou na segunda-feira o empresário Emílio Odebrecht, em depoimento ao juiz Sergio Moro. "Existia uma regra: ou a gente não contribuía para ninguém, ou para todos", disse ainda.
Com base nessas delações, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, enviou na noite de terça-feira ao ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin pedido de autorização para abrir 83 inquéritos contra autoridades com foro privilegiado. Ele solicitou também que o ministro libere a retirada do sigilo desses acordos.