'Chocante é o apoio à tortura de quem furta chocolate', diz advogado que acompanha jovem chicoteado

Vídeo que circula por redes sociais e aplicativos de mensagens tem 40 segundos, mas segundo o jovem informou à polícia, a sessão de tortura filmada durou 40 minutos

4 set 2019 - 12h00
(atualizado às 21h08)
Vídeo que circula por redes sociais e aplicativos de mensagens tem 40 segundos; segundo o jovem infomou à polícia, no entanto, a sessão durou 40 minutos
Vídeo que circula por redes sociais e aplicativos de mensagens tem 40 segundos; segundo o jovem infomou à polícia, no entanto, a sessão durou 40 minutos
Foto: Reprodução / BBC News Brasil

O adolescente de 17 anos filmado enquanto era chicoteado nu com fios elétricos disse à polícia que esta foi a terceira sessão de tortura a que foi exposto dentro do mesmo supermercado em São Paulo. Um inquérito policial foi aberto para apurar o caso, que gerou um misto de revolta e aplausos em redes sociais.

A tortura é crime hediondo no Brasil, com penas que variam de 2 a 8 anos de prisão.

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O vídeo que circula por redes sociais e aplicativos de mensagens desde o início da semana tem 40 segundos. Segundo o jovem informou à polícia, no entanto, a sessão durou bem mais: 40 minutos.

No filme, o adolescente se contorce enquanto um segurança dos seguranças desfere as chicoteadas. Sem camisa, com a calça arriada e um lenço preso à boca com fita adesiva para abafar os gritos, ele tenta se proteger enquanto toma os golpes. "Tira a mão", dizem os dois seguranças, antes de baterem com mais força. Um deles ri. Os homens pedem que o garoto vire de costas após o golpe. Um deles diz: "não pegou, não", enquanto o adolescente chora em desespero. "Vai tomar mais uma", continua o autor dos golpes, "para não ter que te matar, moleque."

Um dos seguranças pergunta se o jovem "vai voltar" (ao supermercado). Chorando, ele mexe a cabeça em sinal negativo. "Você é corajoso, você volta", diz o outro homem.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos) que acompanha o caso, a reação de parte dos brasileiros é espantosa.

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"O mais chocante é o apoio de parte da sociedade brasileira à tortura de quem furta um chocolate. Uma boa parte da sociedade. Em comentários e mensagens que recebemos, várias pessoas dizem que foi pouco. Acham que quem comete um furto, mesmo que famélico (furto para saciar necessidade urgente, como matar a fome), merece chicotadas. Merece pena de morte. E acham que quem fez isso merece ser homenageado, e não punido", avalia.

Em nota, o supermercado Ricoy admite ter havido tortura em seu estabelecimento, diz que os funcionários terceirizados foram afastados e afirma que presta suporte ao jovem. "Ficamos chocados com o conteúdo de uma tortura gratuita e sem sentido em cima do adolescente vítima", diz a nota. "O Ricoy já disponibilizou uma assistente social para conversar com a vítima e a família. Daremos todo o suporte que for necessário."

AJustiça determinou nesta quarta-feira a prisão cautelar dos dois seguranças envolvidos no caso por causa de suspeitas de ameaça contra a vida do adolescente.

'Realidade corriqueira'

Fachada do supermercado Ricoy, na Vila Joaniza, em SP, onde o crime aconteceu
Foto: Google Street View / BBC News Brasil

O adolescente tem seis irmãos e, desde a morte do pai, quando tinha 12 anos, dorme nas ruas de São Paulo sem residência fixa.

A mãe, segundo relatos do Conselho Tutelar, é alcoólatra. O jovem é usuário de crack e já teve uma passagem pela Fundação Casa sob acusação de invasão de residência.

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Atualmente, ele está na casa de um dos irmãos após ter procurado a polícia para denunciar os agressores.

Casos de abuso em São Paulo são acompanhados há 23 anos por Castro Alves, que está em seu segundo mandato no Condepe (criado pela Constituição do Estado de São Paulo em 1989, com a finalidade de "fiscalizar, denunciar e cobrar apurações de violações de direitos humanos cometidas por agentes do estado ou particulares").

Para ele, as imagens de tortura chocam, mas não surpreendem.

"Infelizmente, esta é uma realidade até corriqueira. O difícil é ter imagens para comprovar", diz. "Provavelmente, neste caso, os próprios agressores queriam de alguma forma se vangloriar e mostrar orgulho pelo que cometeram. Por isso a filmagem."

Em fevereiro, outro jovem negro morreu vítima de estrangulamento por um segurança do hipermercado Extra, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Em um procedimento normal, os seguranças do supermercado teriam duas opções. Relevar o caso, considerando o furto insignificante, ou chamar a Polícia Militar. A partir daí, o jovem seria levado à delegacia e responderia por ato infracional de furto. Posteriormente ele seria convocado pela Vara de Infância, seria ouvido por promotores e membros do conselho tutelar, até que uma penalidade fosse determinada.

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"O caminho correto é acreditar nas instituições. O processo legal precisa ser respeitado", diz o advogado Castro Alves. "Existe uma ascensão da barbárie e da incivilidade na sociedade brasileira, estimulada por alguns parlamentares, governadores e pelo presidente da República."

A última pesquisa nacional sobre crianças e adolescentes dormindo nas ruas do Brasil é de 2011. Na época, a secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República fez um levantamento em 75 cidades e identificou cerca de 24 mil meninos e meninas nessa situação. Os principais motivos eram discussão com pais e irmãos (32,3%); violência doméstica (30,6%) e uso de álcool e drogas (30,4%).

Racismo

Há também quem tente ajudar o jovem agredido. Grupos têm se organizado para enviar cestas básicas e oferecer auxílio psicológico.

Um protesto foi organizado em frente ao supermercado Ricoy, na Vila Joaniza, na zona sul de São Paulo, onde o crime ocorreu.

"Os seguranças sem pudor nenhum filmaram essa sessão de tortura e divulgaram em grupos de WhatsApp. Essa situação de extrema violência e desumanidade é mais uma prova do quão profundo ainda é o legado do racismo estrutural deixado pela escravidão na nossa sociedade", dizem os organizadores, que convocam o protesto "em apoio ao jovem e em total repúdio a essa situação brutal de racismo".

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"Precisamos fortalecer a organização e luta para que cenas como essa deixem de ser tão frequentes, ser jovem e negro não é crime", eles dizem.

Em nota, o supermercado diz que "desde sua fundação, na década de 1970, exerce os princípios mais rígidos de valorização do ser humano, seja em nossas lojas, ou em nossa comunidade".

"Ficamos muito abalados com a notícia que nos causou repulsa imediata."

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