Em meio à crise econômica do Rio de Janeiro, o retorno de cenas de tiroteio e confrontos e à mudança em toda a cúpula de segurança pública do Estado, as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) tendem a ser o termômetro do sucesso ou fracasso da nova gestão.
Vista anos atrás como um grande sucesso, a iniciativa enfrenta seu momento mais frágil. Com 38 unidades em diferentes favelas da cidade, o programa tem mais de 9 mil policiais e enfrenta críticas de moradores, denúncias de abuso policial e dificuldades com a falta de recursos e a impossibilidade de aumento de efetivo.
O novo secretário estadual da Segurança, Roberto Sá - substituto de José Mariano Beltrame, que ficou no cargo por quase dez anos -, afirmou que as UPPs serão mantidas e que não haverá redução.
Mas disse, porém, que o projeto deve passar por ajustes, incluindo realocar policiais de unidades mais tranquilas para aquelas onde há mais problemas. Segundo ele, a secretaria está fazendo um diagnóstico dos índices criminais de cada unidade para determinar como devem ser feitos esses ajustes.
A BBC Brasil conversou com dois especialistas e dois moradores de UPPs sobre o futuro do programa. Confira os depoimentos:
Ana Paula Oliveira, ativista e moradora da UPP de Manguinhos
Quando criaram a UPP, em 2012, eu vi como positivo o fato de não vermos mais armas. A gente sabia que os traficantes ainda estavam ali, mas não víamos mais aquelas armas pesadas.
A questão é que rapidamente isso foi substituído pelo armamento pesado da polícia, e aos poucos ficou claro que a UPP não traria projetos sociais nem a paz, mas sim apenas uma forte militarização controlando tudo que os moradores fazem.
Logo no ano seguinte veio a primeira morte provocada por policiais da UPP, em março de 2013, e em outubro a segunda, um garoto espancado até a morte pela polícia. Sete meses depois foi o meu filho, morto com um tiro nas costas.
Não adianta mudar nomenclatura e cor do uniforme. É toda a estrutura e o treinamento da Polícia Militar que precisa mudar. Eles vêm para cá com ódio. Na visão deles, o pobre e favelado é o inimigo que precisa ser exterminado.
Fico revoltada ao ver que nossos filhos morreram em nome de um projeto racista, classista, excludente e de mentira. Eles estão buscando a segurança de quem? Eu digo com propriedade que a UPP é um extermínio de favelados. É mesmo. A maioria das pessoas são mortas com tiro nas costas ou na cabeça.
Para ser justa, nos últimos anos ganhamos a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e a Clínica da Família, mas dentro da comunidade é só a polícia mesmo. Para nós ficou claro que a UPP é uma farsa. A ideia de pacificação e proximidade é uma grande mentira.
No cenário atual eu acho que as coisas só vão piorar. Não tenho nenhuma expectativa positiva. Se antes eles tinham dinheiro e nada deu certo, imagina agora, em crise? Eu acho que infelizmente dias sombrios nos esperam.
E mesmo que houvesse muito dinheiro para investir, de nada adiantaria se você continua com uma Polícia Militar que vê o morador de favela como inimigo. Nós não precisamos de mais e mais policiais, precisamos de saúde, educação, lazer e cultura, e não mais morte e violência.
Ana Paula Oliveira nasceu e cresceu na favela de Manguinhos, na Zona Norte do Rio. Seu filho Johnatha foi morto com um tiro nas costas disparado por um policial da UPP em maio de 2014, e desde então tornou-se ativista de grupos de mães que perderam filhos devido à violência policial. Sua luta já a levou a Washington, Genebra e outros países da Europa.
Pedro Strozenberg, pesquisador e ex-membro do Conselho Nacional de Segurança Pública
Nesse momento de crise, eu acho que é muito importante que não haja maniqueísmos ao falar do programa das UPPs. Houve acertos e erros, mas tratar a política como algo fracassado de forma geral não trará benefícios à segurança pública.
Eu vejo que deu certo uma mudança de mentalidade, dessa lógica de enfrentamento, e de uma nova maneira de selecionar e treinar policiais, com capacitação direcionada para o policiamento de proximidade. Por outro lado a velocidade de expansão fez com que o projeto fosse enfraquecido também no treinamento de efetivo.
Os pontos negativos foram tratar as favelas de forma muito semelhante, quando elas possuem diferenças enormes entre si, e a falta das políticas de Estado, das iniciativas da prefeitura, dos projetos e melhorias que haviam sido incluídas no projeto inicial. Faltou também um sistema de monitoramento de problemas, de abusos.
Obviamente você não pode tolerar 15 pessoas mortas num ano numa comunidade em que há um projeto de polícia comunitária, como o que ocorre no Complexo do Alemão. Algo está errado e precisava ter havido um controle sobre isso, uma intervenção atuando sobre o que está errado.
Nesse cenário caótico do RJ no momento, sem dúvida as UPPs se encontram numa situação crítica e muito delicada. Possivelmente vão reduzir efetivo em algumas unidades e reforçar em outras. Vai ser necessário uma aliança com os governos municipal e federal.
O mais importante é perceber que das 38 unidades há dez em estado crítico. Não se pode dizer que o projeto fracassou, pois há o risco de retrocedermos a um nível em que os avanços feitos sejam desqualificados.
Sobre a ausência dos projetos sociais e um monitoramento mais rígido dos desvios de conduta dos policiais eu acho que são duas bandeiras das quais não se pode desistir. É necessário bater nessa tecla até que isso aconteça.
Pedro Strozenberg é pesquisador da área de segurança pública do Instituto de Estudos da Religião (Iser), e ex-membro do Conselho Nacional de Segurança Pública. Também atuou no Conselho Estadual de Direitos Humanos e de Segurança Pública do Estado do RJ e foi subsecretário de Direitos Humanos do Estado do RJ.
Thainã Medeiros, comunicador, ativista e morador da UPP do Complexo do Alemão
Eu acho que a situação atual no Complexo do Alemão é o resultado de uma série de equívocos, começando com a ocupação com o Exército, em 2010.
Para ser justo, no início havia uma expectativa muito positiva. Muitos moradores estavam animados e os militares entregavam bilhetes que falavam de um novo tempo, de mudanças. E foram três anos sem tiroteio. Ouvíamos tiros, mas não tinha tiroteio, confronto.
Por outro lado tinha a opressão da Polícia Militar, que transformou hábitos e a cultura da favela, com revistas, intimidações e proibições, como os bailes funk, que passaram a ser vetados.
Por um lado eu podia sair de casa e ir trabalhar sem medo de tiroteio, mas outro se estivesse na rua depois das 22h poderia levar um tapa na cara e ser chamado de vagabundo por policiais da UPP.
Mas tudo mudou em maio de 2013, quando a corrida da paz, da qual participava o ex-secretário de segurança José Mariano Beltrame, foi interrompida por cinco minutos de tiros. Foi um sinal, um recado bem claro, de que as coisas iam começar a mudar.
A UPP tem que sair, eles têm que ir embora do Alemão. Há iniciativas lá de saúde, educação, cultura, de autogestão, criados por moradores, e eles atrapalham.
Se não tem dinheiro para as políticas sociais e nem para uma polícia bem treinada, a presença deles lá só está alimentando a guerra. São forças inimigas no mesmo território e inocentes morrendo no meio.
Thainã Medeiros nasceu e cresceu no Complexo do Alemão. Desde o final de 2013 integra o Coletivo Papo Reto Comunicação Independente, que tornou-se uma referência de comunicação e monitoramento da violência policial e já levou seus integrantes à sede das Nações Unidas, em Nova York, para debates e encontros sobre o tema.
Luiz Eduardo Soares, pesquisador, antropólogo e ex-secretário nacional de Segurança Pública
A essa altura muitos já reconhecem, inclusive autoridades, que o projeto de pacificação como concebido inicialmente fracassou. É claro que há situações e situações, mas de forma geral é uma iniciativa fracassada. E isso ocorreu basicamente por duas razões: não houve reforma das polícias e não houve a entrada de políticas sociais junto com os policiais de UPPs.
Não tem como você levar adiante um projeto de policiamento comunitário com uma polícia violenta e corrupta. Era previsível que houvesse uma série de abusos e de corrupção levando a uma desmoralização que finalmente traria de volta o tráfico. A formação que era dada a esses policiais de UPPs era muito breve, muito incipiente. A tradição e os hábitos da Polícia Militar nunca mudaram.
A ausência de políticas sociais enfraqueceu demais o projeto, assim como a expansão e a escolha dos locais que recebiam UPP não com base num diagnóstico da situação, mas sim as mais próximas da Zona Sul do Rio e de locais com movimentação de turistas visando a Copa do Mundo e as Olimpíadas, tentando mostrar à classe média e aos turistas que o problema estava resolvido.
Não vejo saída em meio à crise atual no Rio de Janeiro. Eu acho que as UPPs vão falir uma a uma, indo ao fundo do poço e se corroendo. Os policiais de UPPs trabalham em condições análogas à escravidão, segundo o Ministério Público do RJ, e realocar efetivo vai descobrir uma parte para cobrir outra, sem sucesso.
Diante disso é óbvio que o tráfico está se reorganizando, disputando quem vai ficar com que morro, com que território, nessa retomada de poder.
Luiz Eduardo Soares é mestre em antropologia, doutor em ciência política e pós-doutor em filosofia política. Assumiu a Secretaria Nacional de Segurança Pública em 2003 eera coordenador de segurança, justiça e cidadania do Estado do RJ. É professor da UERJ e já foi pesquisador das universidades de Columbia e Harvard.