Desde o mês passado, a rotina de Daiane da Silva, de 23 anos, tem sido bastante cansativa. Ela sai de casa por volta das 18h e estuda até às 22h. Em seguida, segue direto para o trabalho, onde costuma ficar até às 4h. Ela volta para casa, dorme algumas horas e faz serviços domésticos. Cuida da casa, vai ao mercado. Assim como todo mundo. A diferença é que, por ser travesti e prostituta, tem que lidar com agressões e tentativas de assassinato praticamente diárias. O que não a deixa desanimar é a oportunidade de mudar de vida que enxerga na bolsa que está recebendo da prefeitura de São Paulo para concluir os estudos e ingressar no mercado de trabalho.
Daiane é uma das participantes do Transcidadania, programa que foi lançado no final de janeiro pelo prefeito Fernando Haddad (PT). Coordenado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, ele determina o oferecimento de R$ 840 para travestis e transexuais concluírem ensino fundamental e médio por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), acompanharem cursos profissionalizantes do Pronatec e realizarem estágios. Foram disponibilizadas, inicialmente, 100 vagas com duração de dois anos – sendo que todas já foram preenchidas. Moradores de rua atendidos em abrigos ganharam prioridade.
“As pessoas falam que o governo não deveria gastar dinheiro com a gente. Nós somos vistas apenas como sexo ou crime. Ou somos prostitutas ou somos assaltantes. Mas vamos para esses caminhos por que não temos outros. Com essa ajuda, vamos estar no meio da sociedade. E agora que estamos estudando, fazendo tudo certo, eles continuam criticando? Não faz sentido”, disse ao Terra.
A estudante se traveste desde a adolescência. Ela nasceu em Fortaleza, no Ceará, onde estudou até a quinta série. Há um ano veio para a capital paulista tentar “melhorar de vida”. Diferente de muitas amigas que moram na rua, ela não é dependente de nenhuma droga e conseguiu alugar um cômodo em uma casa na região do Carandiru. Assim que ficou sabendo do lançamento do Transcidadania, foi ao Centro de Combate à Homofobia (CCH), localizado no Pateo do Colégio, atrás de mais informações e se inscreveu.
“Eu procurei emprego várias vezes e fecharam as portas para mim por que tenho a escolaridade baixa. Eu sou esforçada, sei lidar com as pessoas. Mas, quando falo que estudei até a quinta série, falam que não tem como me contratar. Já sou travesti, sem estudo então... impossível”, contou. “Com a escolaridade completa, eles não vão ter como me negar assim de cara. Pelo menos três meses de experiência, em algum lugar, eu vou conseguir”, completou.
Embora procure emprego em praticamente todas as áreas que aparecem, de vendas a telemarketing, ela sonha em cursar enfermagem. Quando tem tempo livre, entra na internet, pesquisa detalhes sobre a profissão e fica imaginando se, um dia, conseguirá frequentar hospitais não mais para tratar os ferimentos causados nas agressões que sofre nas ruas, mas para ajudar a cuidar dos outros pacientes.
“As pessoas têm trabalho, têm salário certinho todo mês. Por que eu não posso ter? Ser humano é só homem e mulher hetero? O resto é tudo motivo de piada? A gente sofre muito, amiga. Demais. É muito desrespeito. Somos agredidas sempre. Já tentaram me matar. Assustou? Lógico, mulher! Na rua, o que mais fazem é tentar matar travesti. Descem do carro e começam a nos espancar à toa. Às vezes conseguimos escapar. Eu sempre consegui”, disse. “O estudo para mim, graças a deus, vai ser muito bem utilizado. Mas entendo que ele não é tudo. Existem pessoas que até se formam e não sabem nada da vida. São mais ignorantes que muito analfabeto”, finalizou.
Coordenadora se diz surpreendida com boa recepção aos alunos
A entrevista com Daiane foi feita nesta quarta-feira no CCH. Quem recebeu a reportagem no local foi Symmy Larrat, coordenadora do Transcidadania. Ela contou que a ideia de desenvolver um programa especificamente voltado a essa população foi do próprio prefeito, que procurou a secretaria e pediu para que os responsáveis elaborassem algum projeto na área.
Ainda de acordo com Symmy, uma das surpresas que teve após a implantação do programa foi a boa recepção que os alunos (travestis e homens e mulheres transexuais) tiveram assim que chegaram às salas de aula. “As turmas são todas mistas. Eles estudam com pessoas que não são trans. Por isso, esperávamos alguns problemas, mas eles não aconteceram. Tivemos um ou outro caso pequeno e isolado, mas só. Fizemos um bom trabalho de conscientização e sensibilização com professores, funcionários e estudantes. Também colocamos um psicólogo in loco em cada escola. E acho que isso tudo deu certo”, disse.
Novo secretário, Suplicy defende iniciativa “ousada”
Durante a visita ao prédio do CCH¸ o Terra foi surpreendido com a chegada de Eduardo Suplicy, novo comandante da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Ele conversou rapidamente com a reportagem e elogiou o andamento do Transcidadania.
“Acho que é uma iniciativa importante do Haddad e dos demais órgãos da prefeitura. Abriram-se oportunidades a pessoas trans para que elas possam, em vez de estar na rua, realizar cursos e iniciar atividades profissionais. Esse programa se iniciou uma semana antes de eu assumir a secretaria. O Rogério Sottili, secretário anterior, convidado por mim, continua conosco como secretário adjunto. Quero dar continuidade e examinar quais serão resultados da experiência – que, em princípio, me parece muito positiva e ousada”, afirmou.
Mais sobre o Transcidadania
Além do orçamento de cerca de R$ 3 milhões da SMDHC, outras secretarias desenvolveram, dentro do programa, ações específicas com verbas próprias. A Secretaria Municipal de Saúde, por exemplo, passou a oferecer tratamento hormonal às participantes em duas Unidades Básicas de Saúde. Além disso, a Secretaria de Políticas para Mulheres começou a realizar atendimento prioritário às travestis e transexuais vítimas de violência doméstica no Centro de Referência da Mulher (CRM). A Secretaria de Educação, por sua vez, regulamentou a utilização do nome social na rede municipal de ensino em boletins, livros, registros escolares, certificados e diplomas.
De acordo com a organização europeia Transgender, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de travestis e transexuais em todo o mundo. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013, foram 486 mortes, número quatro vezes maior que no México, que ocupa a segunda posição da lista.