Descrito pela família como esperto e carinhoso, fã de videogames e brincadeiras como quase todo menino de 10 anos, Thales Cruz fez sua primeira atividade externa como escoteiro no último dia 20 de agosto, em um parque na região da Pampulha, em Belo Horizonte.
Seis dias depois, começou a sentir febre. Passadas 72 horas, o primeiro diagnóstico no pronto-socorro foi sinusite. Em um posto de saúde, descreveram dengue.
O menino tinha manchas na pele e muitas dores pelo corpo. Foram mais dois hospitais até a doença certa começar a ser tratada. Mas era tarde: Thales morreu em 4 de setembro.
Exames comprovaram a morte por febre maculosa, doença infecciosa que provoca febre elevada, dores de cabeça e musculares, prostração e, eventualmente, hemorragias, segundo o Ministério da Saúde. Causada pela bactéria Ricketsia ricketsii, presente na saliva de carrapato, ela pode matar até 85% das vítimas quando não tratada de forma adequada.
São 1.592 casos e 495 mortes pela doença no Brasil desde 2000.
A morte de Thales reacendeu a discussão em Belo Horizonte sobre a situação das capivaras, algumas das principais "moradoras" da Pampulha, região turística da capital mineira e dona de um conjunto arquitetônico que há dois meses foi declarado patrimônio cultural da humanidade.
Além do garoto Thales, mais um caso recente de contaminação na orla da Pampulha foi comprovado. Um funcionário da Aeronáutica de 54 anos recebeu tratamento e teve alta hospitalar. Ele encontrou um carrapato no corpo quatro dias após passear em volta da lagoa. Outras duas suspeitas estão em investigação na capital mineira.
A capivara, maior roedor do mundo, pode ser vista em diversos pontos da lagoa da Pampulha. Já foi até acusada de comer partes do jardim projetado por Burle Marx (1909-1994) no Museu de Arte da Pampulha, uma das edificações do conjunto criado por Oscar Niemeyer (1907-2012).
A mãe de Thales, a garçonete Desireé Martins, diz ser muito provável que o menino tenha tido contato com o carrapato infectado no parque na orla da lagoa. "Ele era uma criança muito especial, que aproveitou bastante a vida dele."
A morte do garoto despertou medo entre a população e revelou falhas do poder público em controlar a doença. O problema das capivaras na região mais famosa de BH também virou munição de campanha eleitoral e divide especialistas sobre possíveis soluções - houve até quem sugerisse o abate dos animais.
Eutanásia
O caminho mais radical é defendido pelo sanitarista e professor de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Romário Cerqueira Leite.
"É preciso tomar uma providência rápida, pois as pessoas vão morrer. Fazer uma coisa dura e durante um período curto elimina o problema", diz, ao defender o abate das capivaras.
Ele afirma que a situação na Pampulha é complexa: o maior equipamento público de lazer da cidade é um ambiente ideal para as capivaras, com abundância de alimento (vegetação) e ausência de predadores naturais como sucuris e onças-pintadas.
"Elas (capivaras) vivem no paraíso. Com comida de sobra, sem predadores e se multiplicando demais."
O sanitarista participou de discussão semelhante em Campinas (SP), em 2011, quando 13 capivaras foram exterminadas no Parque Largo do Café. Antes do abate, o parque foi fechado e as capivaras, confinadas. Nesse período, quatro funcionários do parque contraíram febre maculosa e três morreram - mas não houve casos posteriores da doença no local.
"Sobre a Pampulha, não recomendo que ninguém frequente a região. Pegar a febre maculosa é como ganhar uma loteria do mal. Não vale a pena arriscar", aconselha Leite.
Confinamento
Em 2014, a Prefeitura de BH conduziu uma tentativa fracassada de manejo das capivaras. Conseguiu autorização para recolher e levar 52 animais para um curral dentro do Parque Ecológico da Pampulha - o mesmo que o menino Thales visitou no mês passado.
Pegar a febre maculosa é como ganhar uma loteria do mal.
O plano era transferir os bichos para outro local, mas quem poderia recebê-los no interior do Estado desistiu após saber que as capivaras tinham carrapatos com a bactéria Ricketsia ricketsii.
A demora motivou uma disputa entre o Ibama (que pedia a liberação dos roedores) e a prefeitura. Resultado: 38 capivaras morreram por estresse e uma decisão judicial ordenou a soltura das sobreviventes em janeiro deste ano.
Hoje a prefeitura discute uma solução com o Ibama e o Ministério Público, mas ainda não há consenso sobre o destino das capivaras. "O importante é que saímos do impasse da judicialização", diz Jorge Espeschit, presidente da Fundação Zoobotânica da cidade.
Ele diz que a prefeitura tem feito podas regulares na orla da lagoa e ações com carroceiros para controlar carrapatos em cavalos.
Em nota emitida após a morte do menino Thales, a prefeitura prometeu intensificar ações preventivas, como capacitação de profissionais e distribuição de material informativo para a população com "medidas para evitar o contato com os carrapatos, além de providências a serem tomadas em caso de suspeita de picada por esse vetor".
Esterilização
Para o veterinário Paulo Anselmo Nunes, diretor do Departamento de Proteção e Bem-Estar Animal de Campinas (SP), abate e confinamento não funcionam "porque as populações de capivaras voltam".
Ele cita o parque da cidade onde capivaras foram sacrificadas e que hoje já registra presença dos bichos - os roedores transitam pela rede pluvial e voltam a colonizar os ambientes.
Nunes defende a vasectomia dos machos e laqueadura das fêmeas, mesma opção de Tarcízio de Paula, veterinário e professor que coordenou uma experiência bem-sucedida na Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Havia cerca de 90 capivaras no campus da UFV e o professor comandou um trabalho em que todas passaram por vasectomia ou laqueadura - hoje restam apenas cinco. "É diferente de castrar, pois remover o testículo ou ovário pode levar os animais a perder característica de dominância."
A universidade também usa cavalos como "isca" para carrapatos. Resistentes à febre maculosa, os cavalos são raspados e tomam banho após serem infestados, e aplica-se veneno nos carrapatos que caem no solo.
Outra etapa envolve equipar as capivaras com uma espécie de mochila, com um mecanismo que espalha o carrapaticida. "As capivaras entram na água o dia inteiro e levam o carrapaticida embora. Esse mecanismo borrifa a solução várias vezes ao dia", explica Tarsízio de Paula.
Capivaras na política
A estratégia de Viçosa foi apresentada para autoridades que tratam do assunto em Belo Horizonte, em congresso e numa audiência que teve a presença do então vice-prefeito e secretário de Meio Ambiente de BH, Délio Malheiros.
Malheiros (PSD) é o candidato à prefeitura apoiado pelo atual prefeito, Marcio Lacerda (PSB). Em debate entre candidatos neste mês, acabou ironizado pela situação das capivaras.
"A função mais importante que você (Malheiros) já recebeu na vida foi cuidar de 50 capivaras. Quem não deu conta de cuidar de capivara não pode dar conta de 2,4 milhões de habitantes", afirmou o ex-cartola de futebol Alexandre Kalil (PHS).
O tema voltou à tona em debate no domingo (25). O candidato à prefeitura Sargento Rodrigues (PDT) disse que a administração negligenciou o problema. "Não tiveram coragem de tratar o assunto. Quem está sentado lá esperou acontecer um fato grave para acordar", afirmou.
"É preciso vontade política para tratar essa questão", diz a ambientalista Adriana Araújo, do Movimento Mineiro pelos Direitos dos Animais.
Ela diz que a solução exige capacitação, investimento e planejamento. Cita exemplo da Prefeitura de Curitiba, que desenvolve campanhas nas mídias sociais usando a capivara como mascote da cidade. Em junho, oito esculturas dos roedores foram expostas pela cidade e o dinheiro foi para uma campanha do agasalho.
A ambientalista afirma que há risco de as capivaras serem "demonizadas" na capital mineira. Ela afirma já ter recebido denúncias de uma capivara prenha abatida a tiros na Pampulha, de animais atropelados e agredidos a pauladas e pedradas.
Solução definitiva
"Por que exterminar a capivara? O carrapato pode ser encontrado em outros animais também. Eu acredito que a prefeitura tem que cuidar delas", diz Desireé, mãe do menino Thales.
Paulo Nunes, da Prefeitura de Campinas, afirma que a situação das capivaras em centros urbanos expõe a dificuldade dos humanos em lidar com a fauna.
Para o infectologista Rodrigo Angerami, do Departamento de Vigilância em Saúde da cidade paulista, o desafio no manejo de animais silvestres é conciliar a proteção deles com a resolução rápida de problemas.
"Administradores querem uma solução definitiva, mas quando se trata de fauna isso não existe", conclui Júnio Augusto, analista do Ibama em Minas Gerais.