No dia 13 de junho de 2019, 0 motorista de aplicativo D. P. S., de 38 anos, decidiu dar uma pausa nas corridas e dirigiu o seu Ford Fiesta até a boca de fumo da Cocada, uma das favelas de Niterói. Viciado há uma década, precisava comprar cocaína.
Como sempre pegava a droga no mesmo lugar, o motorista logo reconheceu que o vendedor da vez era o Pirulito - um jovem negro e de cabelo raspado à máquina. Mas só ficaria sabendo depois que o traficante, na verdade, se chamava Lucas Cezar dos Santos de Souza, tinha 19 anos e fazia parte da última leva de jovens adotados pela deputada Flordelis e pelo pastor Anderson do Carmo, que seria executado a tiros naquela semana.
Em depoimentos, D. P. S. narra que Lucas aproveitou a ocasião para perguntar se ele não conseguiria uma arma de fogo para vender - de preferência uma .40 ou 9 mm, calibres normalmente usados por forças policiais. "Um amigo 'Playboy' que tá querendo. Só não comenta com ninguém na Cocada", teria dito o jovem, que iria ganhar um dinheiro caso a transação fosse bem sucedida.
O motorista de aplicativo estranhou o fato de o pedido especificar até o calibre da arma, mas achou melhor não comentar. Morador da favela do Arrastão, em São Gonçalo, procurou na mesma noite um traficante do bairro - às vezes, chamado pelo codinome Colômbia; às vezes, por Bolívia - que, por sua vez, indicou o contato de outro criminoso, da favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio.
Pelo Whatsapp, o contato teria enviado a foto de uma pistola preta, da marca Bersa, 9 mm, que sairia por R$ 8,5 mil, mais R$ 500 pelas munições. Ao receber o retorno, o filho adotivo de Flordelis ficou de consultar o "Playboy".
Suspeito de envolvimento com crime, Lucas era 'solução' para matar o pastor
Lucas perdera o pai para o tráfico e a mãe para o câncer. Criado em áreas dominadas pelo Comando Vermelho (CV), a maior facção criminosa do Rio, ele viveu até o início da adolescência com quatro irmãos biológicos no barraco de uma tia em Itaboraí, onde "ficavam largados" e "tinham uma vida muito pobre".
Certo dia, há mais ou menos sete anos, o casal de pastores apareceu por lá, disse querer adotá-los e, para surpresa dos órfãos, na mesma hora os levou para Niterói. Embora até tenha cuidado da sonoplastia dos cultos por um tempo, o jovem nunca se adaptou à nova família.
Em casa, passou a protagonizar conflitos: abandonou a escola, saía escondido e foi acusado de furtar relógios de marca de irmãos adotivos. Segundo testemunhas, também se sentia discriminado e chegou a ser expulso por Anderson após uma das suas "fugas" para frequentar baile funk.
Em redes sociais, começaram a aparecer fotos do jovem portando pistolas ou fuzil. Pela família, também corria a notícia de que Lucas se envolvera em uma troca de tiros com policiais e, apesar de não ter sido baleado, acabou machucando a perna. Pouco antes de completar 18 anos, foi detido por suspeita de tráfico de droga, faltou à audiência na Justiça e passou a ter um mandado de apreensão aberto contra ele.
À polícia, Flordelis contou que alugou um kitnet para o filho adotivo, próximo à casa da família. De acordo com ela, Lucas seria uma "pessoa carinhosa, mas que o exemplo do pai biológico ainda o influenciava".
Até então visto como um problema pelo histórico de criminalidade e suspeita de integrar o CV, Lucas passou a ser considerado uma "solução" para a célula que queria ver o pastor Anderson morto, aponta a investigação. Entre os denunciados pelo Ministério Público do Rio, ele é o único que não fazia parte da chamada "primeira geração" da família.
Em janeiro de 2019, Lucas teria recebido uma mensagem da irmã adotiva Marzy Teixeira da Sylva, de 36 anos, que é atribuída pela polícia a Flordelis, pedindo para simular um assalto contra Anderson. Pelo serviço, receberia R$ 5 mil e relógios do pastor, cuja coleção somava mais de 15 unidades de marcas sofisticadas.
No seu primeiro interrogatório, realizado menos de 10 horas após o assassinato, Lucas negou participação. No dia, afirmou que desconhecia "qualquer ameaça" contra o pai adotivo.
Com o transcorrer da investigação, a polícia concluiu que ele não estava na casa de Flordelis na hora do homicídio e, portanto, não poderia ter apertado o gatilho - como parte da família insinuou na delegacia. Contudo, também iria responder pelo crime. Para a investigação, ele foi o responsável por conseguir a arma usada na ação.
Acusado de executar pastor, enteado já tinha problema com a Justiça
O motorista de aplicativo é a principal testemunha para esclarecer como a pistola Bersa, modelo TPR9, foi parar com familiares de Flordelis. Segundo D. P. S. relata, horas após ter mostrado a imagem da arma para Lucas, recebeu uma mensagem de outro homem no Whatsapp.
O interlocutor dizia ser o "amigo" de Lucas e já teria conseguido fechar o negócio com o traficante do Complexo da Maré. Será que o motorista de aplicativo não poderia combinar algum ponto de encontro na região e, de lá, guiá-lo até uma praça na Nova Holanda, para pegar a arma encomendada?
D. P. S. fez os cálculos. A corrida custaria R$ 70 pelo aplicativo, mas só aceitaria R$ 100 - afinal, não se tratava de um "serviço convencional" e tinha de cobrir a tarifa do pedágio. "Dinheiro não é problema", teria aceitado o interlocutor.
Pela foto do Whatsapp, a testemunha reconheceria, depois, que "Playboy" era Flávio dos Santos Rodrigues, de 39 anos. Filho biológico de Flordelis, a relação dele com Anderson nunca foi das melhores, descrevem familiares. Ainda na juventude saiu para morar com a avó materna, após o casal de pastores começar a receber muitas crianças.
Para testemunhas, Flávio tem perfil "reservado", mas de "temperamento forte". Relatos de supostos conflitos de convivência incluem um episódio em que, durante uma desavença, ele teria desferido uma tesourada nas costas de um irmão.
Após terminar um casamento, foi acusado de violência doméstica e ficou um tempo em Brasília, antes de voltar para a casa da mãe biológica meses antes do homicídio. Quando estava na capital federal, segundo um dos depoimentos, teria comentado que "Anderson roubava muito dinheiro de Flordelis e por isso ele acabaria com o sofrimento dela".
O motorista de aplicativo conta que ele próprio foi dirigindo na frente, no Ford Fiesta, até o local combinado com o traficante. Na sua cola, Flávio conduzia um Fiat Uno. Passava das 19 horas do dia 15 de junho, quando o criminoso chegou em uma moto Honda PCX, de cor branca, segurando dois pacotes, ambos enrolados em papel filme.
Flávio teria feito o pagamento em espécie. Por não ter emprego formal, arcar com pensão de filho e declarar renda mensal de cerca de R$ 2 mil, os investigadores creditam o financiamento a Flordelis. Rapidamente, o traficante contou as notas, entregou os embrulhos e, com um aperto de mãos, selou a venda da pistola que seria usada menos de 48 horas depois para assassinar o pastor Anderson do Carmo.
Como tinham mandados judiciais em aberto por outros supostos crimes, Lucas e Flávio foram detidos ainda em junho de 2019, no dia seguinte à execução. O mais novo respondia por tráfico. O mais velho, pela Lei Maria da Penha.
Agora, também acumulam ordens de prisão por envolvimento na morte do pastor e estão em cadeias diferentes. Flávio teria confessado que atirou contra Anderson, mas depois a defesa contestou a legalidade do depoimento e acusou a polícia de tê-lo coagido. No fim do ano passado, a Justiça do Rio chegou a determinar que ele fosse levado à unidade de segurança máxima por suspeita de pressionar o irmão adotivo a mudar o depoimento e de usar celular no presídio para falar com Flordelis.