Criador de agência de favelas vê UPPs como estupro do Estado

André Fernandes, criador e diretor da Agência de Notícias das Favelas, pede diálogo mais extenso com a população de áreas carentes do Rio. Ele está lançando livro contando sua trajetória de duas décadas de trabalho social

1 abr 2014 - 17h40
(atualizado às 17h42)

O roteiro é sempre o mesmo. As ocupações são previamente anunciadas, as forças de seguranças do Estado do Rio de Janeiro entram nas favelas apregoando que retomaram "o direito de ir e vir" da população em 15 minutos (no máximo) sem qualquer resistência por parte do crime organizado. As bandeiras das corporações envolvidas são hasteadas, as crianças são colocadas dentro dos "caveirões" (os blindados da Polícia Militar) e posam, (supostamente) felizes, para fotos ao lado dos policiais.

Esse espetáculo pirotécnico, sem exageros, a exemplo do que ocorreu no último final de semana no complexo de favelas da Maré, na zona norte da capital fluminense, está longe de traduzir a nova realidade de quem mora em localidades que se mantiveram durantes décadas sob o domínio do tráfico de drogas, ou mesmo da milícia.

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Essa é a opinião do jornalista André Fernandes, criador e diretor da Agência Nacional de Favelas (ANF), com anos de militância no diálogo "entre o morro e o asfalto" e que está lançando em diversos Estados o livro Perseguindo um Sonho - A História da Criação da Primeira Agência de Notícias de Favelas do Mundo

"Eu analiso como um estupro por parte do Estado", afirmou em entrevista ao Terra. "Você não tem nada do Estado, e de repente entra a força de segurança. Tudo na base do 'fiquem quietinhos senão vocês vão levar palmadas'. A população quer saneamento, saúde, educação e cultura. Não vemos de uma boa forma esse comportamento. Você acaba achatando a população sem um diálogo", complementou ele, que desde 1992 está inserido no contexto das favelas ao iniciar projetos sociais no morro do Borel, na zona norte e, posteriormente, fixar residência na comunidade Santa Marta, dois anos depois, na época que a favela em Botafogo, zona sul do Rio, vivia sob o domínio de Marcinho VP, rei do tráfico local na ocasião e protagonista do livro Abusado, do jornalista Caco Barcellos.

Fernandes foi retratado na publicação, inclusive, vivendo o personagem Kevin Vargas. Coincidentemente, hoje, o Santa Marta é a grande vitrine do Estado para a polícia das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs). Foi lá que, em 2008, o governo de Sérgio Cabral instalou a primeira das 38 unidades em funcionamento hoje no Rio de Janeiro. Muito embora não seja contra a política de retomada de território, sobram críticas a cerca do "projeto feito para o capital".

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"O Santa Marta é o exemplo de tudo o que está acontecendo", analisou. "Tem muita gente vendendo (as casas) porque ficou tudo muito caro. Essas contas abusivas da Light (companhia de luz) em várias favelas, não só no Santa Marta, mas em várias outras, é um projeto de poder para o capital entrar, as empresas entrarem e as populações serem excluídas. O (secretário estadual de Segurança Pública, José Mariano) Beltrame queria devolver o direito de ir e vir, eu vejo como algo razoável. Mas a população não está feliz. Você tem que pagar contas altíssimas. As festas que aconteciam, que agora têm que ser autorizadas. Mudou muito a rotina de quem vive nesses lugares e não existem opções." 

As ocupações por parte das forças de segurança, na opinião do jornalista, são exploradas de forma equivocada pela grande mídia. O retrato social é deixado de lado em prol de um público elitizado. "A grande mídia tem alguns interesses que nós não temos. Nossa linha é para os pobres, não para a elite. Nossa linha de atuação é de dar voz aos pobres", explicou. "Nós estamos atrás da informação verdadeira. Essa é a preocupação que a grande mídia tem que ter", completou.

Foi justamente com esse intuito que nasceu o sonho da Agência Nacional de Favelas, em 1996, cuja história agora ele repassa (também para o público de elite) através de seu livro. Com a experiência de ter sido ainda diretor da Casa da Paz, de Vigário Geral, anos após a chacina que ganhou as páginas dos jornais do mundo todo em 1993, ele vê agora reticente a nova investida por parte do governo federal enviando tropas do Exército para ocupar a Maré.

"A preocupação é com um respeito maior, mas isso se perde, o Exército não está preparado para lidar com isso", opinou. "Fui fuzileiro naval (e também missionário) e jamais gostaria de conter algo contra os meus próprios cidadãos. Não sou favorável. O governo se não consegue, talvez o Sérgio Cabral deu um cheque na Dilma, pedindo apoio, se 'linkando' mais à imagem dela. É complicado quando o Estado não tem capacidade de manter a própria segurança. É decretar a falência. Quando a UPP não dá certo, é o decreto da falência. É preciso ampliar o número de lideranças para o diálogo", analisou, acrescentando que é o seu grande objetivo, ou mesmo sonho, com a publicação de sua trajetória em livro.

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"Que em cada favela do mundo a gente tenha um colaborador e que isso democratize as informações dentro das favelas, mudando a qualidade de vida dessa população." 

Fonte: Terra
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