O céu paulistano anunciava um temporal enquanto Caroline Silveira, 24, passava entre os carros parados em um farol da avenida Cruzeiro do Sul, em Santana, zona norte da cidade para "manguear". Na barraca na calçada, entre trovões e buzinas, dormia uma de suas duas filhas, uma menina de um ano e nove meses.
Caroline explica que "manguear" é pedir dinheiro, emprego, comida, leite, fraldas, brinquedos, roupas, ou qualquer auxílio que possa amenizar um pouco a dureza que é viver nas ruas de São Paulo. Como ela, ali na frente da Rodoviária do Tietê, a maior da América Latina, dezenas de pessoas - incluindo bebês - sobrevivem principalmente do verbo manguear.
No caso da família de Caroline, são três gerações de mulheres sob a mesma barraca embaixo do viaduto por onde passa o metrô: ela, suas duas filhas pequenas, e sua mãe, Sulamita Baptista, 42, grávida de oito meses. "Para não fazer uma coisa errada, tirar dos outros, a gente prefere manguear", diz, quando o farol ficou verde.
As quatro mulheres foram para a rua há pouco mais de um ano, depois que Caroline e a mãe perderam seus empregos - os pais das crianças também estão parados, e dependem de bicos esporádicos. Sem dinheiro para o aluguel, a família foi despejada da casa onde vivia. Em Santana, a locação de um apartamento em um conjunto habitacional fica próximo de R$ 1 mil.
Caroline era faxineira em eventos na zona norte, principalmente no centro de convenções do Anhembi, mas a pandemia interrompeu os trabalhos. Já Sulamita, que migrou do Recife há 12 anos, produzia adereços e fantasias em uma escola de samba, mas ficou sem serviço quando o Carnaval foi cancelado.
"A gente vive de pegar marmita e pedir no farol. Todo dia um pessoal vem aqui e doa comida", explica Sulamita, que ajuda a cuidar das netas pequenas e espera o parto de seu terceiro filho para 8 de fevereiro. Ela tem feito acompanhamento médico em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) da região e, quando o bebê nascer, pretende morar por uns tempos na casa de um parente que prometeu ajuda. A filha e as netas, porém, devem continuar na rua.
A família recebe R$ 400 do Auxílio Brasil, programa do governo Jair Bolsonaro (PL) que substituiu o Bolsa Família, mas o valor não dá conta de sanar as necessidades do cotidiano, ainda mais com duas crianças pequenas e uma mulher grávida. "Onde a gente consegue morar com R$ 400 em São Paulo? A gente gasta quase tudo em leite e fraldas. Um quilo de carne está R$ 40. O gás custa R$ 100", diz Sulamita.
A situação da família retrata a crise econômica sob o governo Bolsonaro e agravada pela pandemia: aumento de desemprego e da inflação, milhares de despejos e crescimento da fome. O país soma 12,9 milhões de desempregados, e o preço dos alimentos acumula alta de mais de 14,66% nos últimos 12 meses, segundo o IBGE.
Embora existam decisões judiciais impedindo a remoção forçada de famílias na pandemia, os despejos também cresceram nos dois últimos anos. De agosto de 2020 até novembro do ano passado, 23,5 mil famílias foram despejadas no Brasil, segundo um levantamento da campanha Despejo Zero, lançada por organizações e movimentos sociais. O país somava 123,2 mil famílias ameaçadas de retirada forçada de seus domicílios em outubro do ano passado, um crescimento de 32% em relação ao levantamento anterior, de agosto.
"Se você não tem endereço fixo, dificilmente alguém te dá um emprego", diz Caroline, que passa parte do dia "mangueando" para conseguir alimentar as filhas. "Meu sonho mesmo é ter uma casa, um lugar para ficar. Deixar as meninas na creche e procurar um emprego..."
Suas duas filhas foram inscritas em uma creche da região há poucas semanas, diz, mas a família ainda aguarda ser chamada pela prefeitura. Já sua mãe, Sulamita, sonha com um futuro melhor para o bebê que vai nascer em poucos dias. "Minhas netas já se acostumaram à rua. Não vai acontecer com meu filho também. Só quero um lugar para ficar, ninguém merece a rua", diz.
'A rua é sem futuro'
Nas proximidades da rodoviária do Tietê, a reportagem encontrou dezenas de pessoas em situação parecida: despejadas, sem emprego e renda fixa, vivem em barracas em canteiros e praças. Pararam ali por causa do fluxo intenso de pessoas que entram e saem da rodoviária, oportunidade de conseguir mais doações.
Boa parte fica embaixo do elevado por onde passa a linha 3-azul do metrô, em frente à entrada principal do terminal rodoviário. As grandes pilastras desse viaduto, pintadas com grafites, já fizeram parte de um projeto do poder público e de artistas de transformar a área em uma espécie de museu da arte de rua paulistana. Porém, hoje as obras estão sujas e degradadas, além do mato e lixo acumulado. Quem vive por ali precisa conviver com grandes goteiras e poças d'água que se formam quando chove forte.
Uma dessas famílias é a de Tatiane dos Santos, 37, e Marcio Freire, 42. O casal tem um filho de um ano e oito meses, que vive com eles em uma pequena barraca.
Eles são de Francisco Morato, cidade da Grande São Paulo. Lá, pagavam R$ 600 de aluguel até serem despejados. Sem serviço, migraram para as ruas da zona norte há quatro meses.
"Em Francisco Morato a gente podia fome, sem dinheiro. Lá quase não tem assistência, ninguém ajuda. Aqui sempre tem alguém pra doar uma marmita, um alimento", diz Tatiane, que já foi cozinheira e vendedora. Com o filho pequeno e sem endereço fixo, está desempregada há quase dois anos. Recebe R$ 400 do Auxílio Brasil, mas o valor é consumido com as despesas básicas do filho, como fraudas e leite.
Seu companheiro, Marcio, não consegue serviço fixo como vigilante há mais de um ano - de vez em quando consegue pequenos bicos nas ruas. "A rua é sem futuro, mas é o que tem pra gente. Sempre ouvi que as pessoas que moravam na rua eram 'vagabundas', drogados. Hoje são famílias inteiras, crianças, bebês", diz ele.
O casal afirma ter dificuldade para conseguir uma vaga em centros de acolhida da prefeitura. "Nunca tem vaga pra mulheres e crianças", diz Tatiane.
A poucos metros dali, na avenida Zaki Narchi, há um abrigo municipal, mas o espaço só recebe homens. A reportagem tentou visitar o local na tarde do dia 13/1, mas funcionários de uma empresa terceirizada que administra o ponto impediram a entrada, alegando ser necessária autorização prévia da prefeitura.
Acolhimento
O acolhimento falho a famílias desabrigadas é um dos atuais gargalos da política de assistência à população em situação de rua em São Paulo, segundo Renata Bichir, professora da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM).
"Existem pouquíssimas opções de abrigo para famílias e mulheres com filhos. Muitas vezes, as mulheres precisam sair para procurar emprego, mas não têm com quem deixar as crianças, porque alguns abrigos não permitem que elas fiquem. Acabam deixando com colegas, em uma relação informal", diz.
Para Bichir, o poder público não acompanhou a recente mudança de perfil dessa população. "Os equipamentos sempre foram voltados para homens, mas muitas mulheres e famílias foram viver na rua recentemente, e o serviço não melhorou", explica. "Era muito difícil encontrar crianças nas ruas de São Paulo. Mas com a crise econômica, a alta da inflação e o desemprego entramos de novo nesse buraco", diz.
A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) informou que a cidade tem 18 centros de acolhida exclusivos para mulheres, totalizando 986 vagas - 50 delas para gestantes, mães e bebês. Já para homens existem 11.692 vagas - outras 1.569 não têm predefinição de gênero e são destinadas às famílias que necessitam de acolhimento, diz a prefeitura.
Também afirma que todos os dias agentes abordam adultos, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social na região da rodoviária, "oferecendo apoio e encaminhamento para os centros de acolhidas, inclusive, orientando-os com relação a inscrições em programas de assistência".
O problema é que, na prática, muita gente prefere não recorrer aos abrigos por uma série de problemas, como estrutura ruim, dificuldade de encontrar vagas, regras restritivas e baseadas em padrões morais de comportamento e, no caso das mulheres, receio de perder a guarda dos filhos caso o contato com municipalidade inicie algum processo judicial nesse sentido.
Essa é a avaliação Juliana Rocha, mestre em administração pública e governo pela FGV e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), que participa de pesquisas de campo com mulheres em situação de rua.
"Alguns espaços permitem que as mulheres fiquem no local durante o dia. Já em outros ela precisa ficar fora e só voltar no fim da tarde. Além disso, as mulheres são cobradas para ter uma super postura materna de trabalho e estudo ao mesmo tempo em que são julgadas negativamente quando existe algum problema, quando deixam o filho com alguém para procurar emprego, ou quando arrumam namorado", diz.
Para ela, a situação de rua é ainda mais dramática para as mulheres e crianças, que ficam mais expostas à violência. "A Constituição tem esse compromisso de proteger a criança, porque ela está em desenvolvimento e é vulnerável. Nas ruas, elas estão expostas à violência, ao trabalho infantil, às vezes sem a oportunidade de estudar e experimentar a vida com a proteção social que toda criança merece", diz.
Censo
Nesta semana, a prefeitura lançou um censo da população de rua da cidade. Em 2021, havia 31.884 pessoas vivendo nas vias públicas, alta de 31% em comparação com 2019. Segundo a pesquisa, 16,6% eram mulheres - 83,4%, homens. Em 2019, a porcentagem de mulheres era menor, 15%. Já o recorte de raça aponta que, no ano passado, 70,8% da população de rua era formada por negros (pardos e pretos), e 25,8% por brancos.
O censo aponta, ainda, que 3,1% das pessoas tinham entre 0 e 17 anos. A faixa etária entre 31 e 49 anos representava 49,4%; outros 18,5% tinham entre 18 e 30 anos. Já 28% estavam na rua há menos de dois anos; 28,7%, há mais de dois anos, e 26% há mais de 5 anos.
As redondezas da rodoviária explicam um pouco esse aumento de contingente na pandemia. Há dois anos eram raras as barracas na região. Hoje, o local é uma espécie de ponto inicial de um corredor ocupado por essa moradia precária: ele sai da Cruzeiro do Sul, passa pelas avenidas Santos Dumont e Tiradentes e pela região da cracolândia, chegando ao centro da cidade, onde é difícil circular sem encontrar pessoas nessa condição.
"É importante saber o perfil dessa população para direcionar as políticas públicas adequadas para cada grupo. Há uma série demandas e polícias que poderiam mitigar esse problema complexo, como moradia, segurança alimentar e saúde mental", diz Bichir.
São múltiplos os fatores que levam as pessoas às ruas. O levantamento anterior da prefeitura apontou que 41% dos entrevistados culparam "conflitos familiares" como motivo principal. Outros 26% falaram em "perda de trabalho". Dependência de drogas ilícitas e álcool somavam 33%. Perda de moradia, 13%.
O próprio serviço de acolhimento foi bastante criticado pelos usuários. Embora 59,5% dos entrevistados tenham dito que os abrigos são "bons ou ótimos", 20% disseram já terem sido vítimas de discriminação por parte de algum funcionário, 30% já ficaram sem receber alimentação e 34% relataram ter dormido em colchões sujos ou com insetos.
Em nota, a prefeitura afirma que, "preocupada com o agravamento da crise trazido pela pandemia", adiantou o censo da população de rua para o início deste ano - ele estava previsto para 2023. "A iniciativa se deu justamente pela percepção de que havia necessidade de atualizações", diz a gestão.
Migrantes
A região da rodoviária também é ocupada por migrantes de outros estados que estão tentando a sorte em São Paulo. Sem parentes ou conhecidos na cidade e, principalmente sem oportunidades de emprego, acabaram embaixo de alguma barraca.
É o caso de Caio Marinho, 21, que saiu de Ceilândia, no Distrito Federal, para procurar trabalho na capital paulista. Chegou no final de dezembro, mas até semana retrasada só conseguiu um bico esporádico em uma lanchonete. Sem dinheiro para alugar um espaço, montou uma barraca em frente à rodoviária, onde estava vivendo em meio a dezenas de ciganos que também ocupam a área.
"Fico aqui porque é mais seguro, bem policiado. Passa muita gente e não corro risco, e sempre tem auxílio. De fome ninguém morre", diz. Desempregado há um ano e meio, sonhou que a "cidade das oportunidades" resolveria o problema. "Vim só com a mochila e as roupas. Em São Paulo, se você correr atrás, consegue emprego, sim. Tenho certeza que vai dar certo", diz, dentro da barraca.
Na mesma situação está José Gonçalves Neto, 51, que improvisou um pequeno barraco de plástico em uma praça a poucos metros da rodoviária. De Divinópolis (MG), chegou a São Paulo há pouco mais de um ano. Até conseguiu um emprego de caseiro em Cotia (Grande SP), mas perdeu o serviço no início de dezembro.
"Eu tinha R$ 200 no bolso. Vim para a rodoviária para voltar para Minas, mas perdi o ônibus. Fui para a rua e acabei sendo roubado e agredido. Perdi até os documentos", conta. Parte de sua família, que ainda vive em Minas, não sabe da situação. Sua ex-companheira e a filha, de três anos, ficaram em Cotia. "Eu desisti de voltar para Minas. Tudo o que quero é arrumar um emprego e alugar um quartinho para mim. Depois procurar minha filha de novo...", diz, enquanto espera o semáforo fechar.
Durante o dia, José pede comida e emprego entre os carros que param no farol. Carrega sempre uma placa: "Procuro trabalho. Demitido em 10/12/21. Caseiro/Manutenção Geral. Tenho referência. Aceito ajuda! Deus abençoe".