A acusação de desvio de quase R$ 1 milhão da comissão de formatura de alunos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) ganhou as redes sociais no último fim de semana e segue repercutindo. Juristas ouvidos pelo Estadão afirmam que situações do tipo, de desvios em comissões de formatura, são mais comuns do que se pensa. Em geral, porém, o final dessas histórias não costuma ser feliz.
Como mostrou o Estadão, na terça-feira, 10, um aluno do curso registrou um boletim de ocorrência (BO) contra uma de suas colegas, Alicia Dudy Muller Veiga, de 25 anos, que, segundo ele, se apropriou da quantia aproximada de R$ 920 mil, que seria usada para a formatura dos futuros médicos no final deste ano. O Estadão tentou contato com Alicia por ligação e mensagem, mas não obteve retorno.
Bruno Boris, advogado e professor de Direito da Empresa e do Consumidor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, destaca que não sabe como foi montada a estrutura da comissão dos estudantes, porém, acha bastante curioso o fato de a aluna ter supostamente movimentado sozinha uma grande quantidade de dinheiro.
"Achei muito estranho a estudante ter acesso à conta sem ter assinatura de outra pessoa. 'Ah, mas no estatuto que ela assinou, se comprometia a não movimentar sem assinatura dos outros', mas no banco é só você colocar que é obrigatório movimentar a conta com duas assinaturas. Parece que houve um excesso de confiança, pode acontecer, mas não justifica a pessoa ter desviado o dinheiro", diz. Para ele, é difícil ter havido algum erro da instituição bancária.
Boris afirma que há duas estruturas "mais comuns" às quais os alunos recorrem na hora de organizar a arrecadação de dinheiro para a formatura. Na primeira, os estudantes constroem uma sociedade (uma pessoa jurídica), alguns se tornam administradores e os outros, sócios. Na segunda, nomeiam-se alguns alunos que representam a turma para assinar contrato com uma empresa de formatura e que se tornam intermediários das negociações com a fornecedora.
Nas redes sociais, supostas cópias de conversa pelo WhatsApp mostram que a acusada afirmou aos colegas que teria investido, em setembro de 2021, entre R$ 750 mil e R$ 800 mil em uma corretora que não deu retorno e lhe aplicou um golpe. Ainda segundo a suposta conversa, ela teria gastado o restante do valor com advogados para tentar reaver o dinheiro. A aluna pede desculpas aos colegas e diz que continuará tentando recuperar a quantia.
Também professor do Mackenzie, de Direito do Consumidor e Inovação, o advogado Brunno Giancoli vê ineditismo na justificativa para o sumiço do dinheiro. "É um caso, eu diria, novo."
Boris avalia que, se a estudante tiver de fato feito o investimento, a atitude é "inadmissível". "Porque ela pegar aquele dinheiro e investir, ainda que seja com com a melhor das intenções, precisava de autorização de todos os alunos."
Os alunos buscaram as autoridades e o caso foi registrado no 14.º DP, em Pinheiros, e na sequência encaminhado ao 16º DP, na Vila Clementino, que passou a conduzir as investigações.
Giancoli afirma que esse é o caminho tradicional seguido por estudantes lesados nesse tipo de caso. "Os alunos tomam ciência quando já aconteceu a bomba, então, partem para uma medida de natureza penal, que é uma medida longa." Para haver imputação penal, seja por estelionato ou apropriação indébita, é preciso que o Ministério Público decida fazer a denúncia, não a vítima, explica.
Em paralelo, afirma, muitas vezes os estudantes buscam uma ação indenizatória, de perdas e danos. "Mas nós estamos falando de pessoas que, na maioria das vezes, não têm patrimônio pra suportar uma ação", diz.
"Ou ela é de uma família rica e os pais vão resolver o problema, vão fazer um acordo, ou vai ficar essa coisa do 'chove não molha', que, infelizmente, tem casos e mais casos de formandos que perderam dinheiro e não conseguiram recuperar até hoje, e tiveram que fazer uma 'vaquinha', alguma coisa para ter uma festa ou algo similar", diz.
A chave para evitar esse tipo de situação, orienta Giancoli, é "prevenção e acompanhamento". Confira as dicas dos especialistas ouvidos pelo Estadão:
Como montar uma boa comissão de formatura?
Giancoli explica que, normalmente, a comissão de formatura nada mais é do que uma intermediária. "Em vez de 60, 70 alunos correrem atrás das coisas, esse pequeno grupo representa eles perante, via de regra, a empresa contratada."
As dicas para montar uma boa comissão são:
1. Fazer um bom contrato: Um documento "simples", na palavra dos advogados, mas que formalize os poderes que a comissão tem.
2. 'Conta conjunta': Independente da estrutura de comissão formada, seja via sociedade ou por meio de empresa de formatura, se certificar que movimentações só possam ser feitas com a assinatura de mais de uma pessoa. O que deve estar previsto em contrato.
3. Checar os 'antecedentes' dos integrantes: Fazer uma busca para saber se o/a colega que está se disponibilizando para assumir tem algum problema de crédito ou na Justiça (a pesquisa pode ser feita no Serasa, SPC e nos sites de tribunais dos Estados). "Você tem que tratar como se você fosse contratar um administrador para sua empresa, ou seja, é de bom tom pesquisar o nome da pessoa que está se candidatando", afirma Boris.
4. Cobrar transparência: Em geral, as comissões de formatura e a arrecadação de dinheiro começam bem antes da data de realização do evento. Por isso, é preciso prever prestação de contas da comissão. Giancoli pondera que um relatório mensal é o adequado.
5. Contratar assessoria de um advogado: Na visão de Giancoli, a maioria dos problemas vistos recorrentemente com esse tipo de organização de evento seria evitada se, dentro da previsão de gastos, fossem incluídas assessorias de um advogado, para ajudar na elaboração e revisão da multa, bem como orientar a comissão sobre como coibir desvios.
Como contratar uma boa empresa prestadora de serviço?
A maioria das dicas dadas sobre como montar uma boa comissão de formatura serve para a contratação de uma boa empresa prestadora de serviços, como um bufê, por exemplo.
1. Fazer um bom contrato.
2. Checar a saúde financeira da empresa.
3. Pedir e buscar referências: Conversar com pessoas que já foram atendidas pela empresa para saber como foram as negociações e prestação do serviço.
4. Desconfiar de propostas 'mágicas': Os professores comentaram que o "barato pode sair caro", por isso, aconselham a desconfiar quando uma empresa faz uma oferta com valor muito abaixo das demais.
5. Cobrar transparência.
6. Contratar assessoria de um advogado.
E, em caso de falência da empresa, o que fazer?
Durante a pandemia e no pós-isolamento, casos de empresas que faliram ou pediram para mudar contratos na iminência de falência pipocaram, uma vez que o setor de eventos foi duramente afetado pela crise sanitária e a necessidade de evitar aglomerações.
No caso em que a falência foi decretada judicialmente, não há o que fazer, segundo Boris. Ele explica que, quando a empresa entra com pedido de falência, ela é assumida pelo Judiciário, que irá apurar o que "sobrou" dela e se houve fraude (desvio de dinheiro, por exemplo). "O juiz vai fazer toda uma verificação na empresa se de fato você jogou a toalha porque é bacana ou se você jogou a toalha, mas está com um patrimônio pessoal gigantesco."
Caso tenha havido fraude, o dono responde criminalmente. Mas, caso não encontre nada, o Judiciário pode chegar ao consumidor e informar que, de fato, a empresa estava "quebrada". "Muitas vezes, fala assim: 'Olha desculpa, eu olhei aqui a empresa, a empresa não tem nenhum tostão, não pagou ninguém, não pagou trabalhador, o patrimônio pessoal também dele está vazio. Você não teve festa e perdeu o dinheiro'. Você vai ficar chateado? Vai, mas em tese é o Poder Judiciário falando isso pra você", afirma Boris.
"Agora, o que as empresas costumam fazer é diferente da falência jurídica", diz. "Elas fecham as portas e tentam negociar pra evitar a falência jurídica, porque na falência jurídica, se o juiz perceber que houve fraude, ele bloqueia todos os bens pessoais do sócio. Aí é importante, quando acontece essa situação, você consultar um advogado."