Na favela com maior densidade populacional do país, serviços públicos deficientes e aglomeração são mitigados por iniciativas improvisadas de associações de moradores, enquanto comunidade ignora alertas e isolamento.A julgar pelo movimento em Paraisópolis, favela com 100 mil habitantes na zona sul de São Paulo, nem parece que a capital paulista é o epicentro da pandemia do novo coronavirus no Brasil. São Paulo está em quarentena há duas semanas, mas no bairro com a maior densidade populacional do país, o último sábado parecia um dia comum de sol, com moradores se espremendo entre veículos, vielas
e lojas abertas, contrariando decreto estadual que determina o fechamento do comércio não essencial.
"Eu não estou nem aí para esse coronavírus", se orgulha um dos passantes.
O presidente da Associação de Moradores de Paraisópolis, Gilson Rodrigues, está preocupado. "O pessoal tem esta mentalidade de que a covid-19 é doença de rico e não segue as orientações. Quando finalmente passou um pouco a adotar o confinamento, veio Jair Bolsonaro e desmobilizou tudo", afirma Rodrigues, mencionando as declarações do presidente da República, que chamou a doença de "gripezinha" e convocou repetidamente os brasileiros a saírem de casa e trabalharem normalmente.
Dezenas de casos suspeitos em área com 45 mil pessoas por km²
Quatro pessoas já morreram sob suspeita de covid-19 em Paraisópolis. Enquanto isso, cerca 60 pessoas apresentam sintomas típicos da doença e foram encaminhadas para hospitais da região. Com o acúmulo de testes na fila de espera, nenhum destes casos foi confirmado. No total, oito diagnósticos foram confirmados no bairro onde vivem 45 mil pessoas por km², de acordo com dados do IBGE. São Paulo soma, oficialmente, 3.496 casos e 212 mortes.
A aglomeração de gente é um dos grandes desafios enfrentados pelos responsáveis pelo combate à epidemia na região. "A maior parte das famílias vive em pequenas residências, muitas vezes com várias pessoas dividindo os mesmos cômodos. A situação é extremamente preocupante, porque não há condições básicas de higiene. Falta água, falta sabonete", conta o cardiologista Luiz Carlos Barbosa, que atua em uma base médica improvisada no coração da favela.
Com mais de 20 anos de profissão, Barbosa observa de dentro a gravidade da situação em Paraisópolis e se diz impressionado: "Veremos um grande aumento dos casos nas próximas semanas, as pessoas simplesmente não estão respeitando a quarentena por aqui. O vírus está circulando livremente, cada dia atendemos mais pessoas com casos graves de falta de ar, que encaminhamos para hospitais da região", diz.
Equipe médica contratada pela comunidade
Barbosa faz parte de uma equipe de sete pessoas, equipadas com três ambulâncias, contratadas pela associação de moradores para suprir a falta de um serviço de resgate eficiente dentro da favela, ao custo de 6.000 reais por dia. Uma das ambulâncias é equipada com UTI para remoção dos pacientes mais críticos.
"Estamos há 11 dias, desde que começou o trabalho, sem voltar para casa, dormindo, nos alimentando e vivendo nesta base improvisada", diz o enfermeiro Enderson Marcos. Ele conta que o SAMU, o serviço público de atendimento às urgências pré-hospitalares, não atende a comunidade do mesmo modo que outros bairros de São Paulo.
"Tivemos um paciente que eles [do SAMU] vieram e se recusaram a tocar nele, apesar de estar com baixa oxigenação e 38,5 ºC de febre. A associação nos acionou e o socorremos. Ele agradeceu por estarmos salvando sua vida", conta, emocionado, o enfermeiro de 35 anos. "Se tivéssemos voltado no dia seguinte, ele já não estaria mais lá", completa o cardiologista Barbosa.
A base onde estão há tantos dias e onde ainda devem ficar por um bom tempo foi instalada dentro do ateliê e oficina mecânica de Antonio "Berbela" da Silva, que abandonou seu trabalho e vem atuando "como um paizão", como relatam os demais, cozinhando, fornecendo colchões e contando com doações da comunidade para se manter sem a renda que tinha antes da pandemia.
Balconista de farmácia infectado
Outro paciente atendido pela equipe de emergência improvisada foi Roberto Braga de Souza, de 41 anos. Balconista de farmácia desde os 11, ele foi diagnosticado com covid-19 no dia 28 de março.
"Começou com uma dor nas pernas. No dia seguinte, comecei a sentir muita dor nas costas e dor de cabeça, até que então veio a falta de ar", conta. Ele diz ter sido salvo pela equipe de Enderson e Barbosa.
"A sensação é de estar se afogando, fiquei muito assustado, achei que ia morrer. Tive sorte de conseguir a ajuda de um amigo que os chamou e eles virem rápido me dar oxigênio". Roberto está em casa desde então, e garante estar cumprindo disciplinadamente as recomendações médicas.
Ainda assim, após oito dias resguardado, saiu de casa neste sábado para sacar dinheiro. Os caixas eletrônicos, localizados em meio aos mercados lotados de gente em uma das ruas de comércio da comunidade, estavam com largas filas neste sábado. Foi a um desses caixas eletrônicos que Souza recorreu, aguardou na fila junto aos demais e tocou nas teclas da máquina.
"Paraisópolis está um formigueiro, é um perigo. As pessoas não têm noção da gravidade da doença, e tenho mais amigos que trabalham em farmácia doentes também". Ele desconfia ter sido contaminado no trabalho, onde também recorreu para se automedicar com hidroxicloroquina , medicamento propagado pelo presidente, embora ainda faltem estudos que comprovem sua eficácia. "Pra mim foi a cura", diz Souza.
Iniciativas próprias de emergência médica e solidariedade
A Associação de Moradores de Paraisópolis está se preparando para uma crise de grandes proporções na comunidade. Além das equipes improvisadas de atendimento de urgência - que a partir da semana que vem deve trabalhar sem alternar as escalas - a entidade está iniciando a instalação de uma espécie de hospital de campanha temporário em duas escolas da comunidade.
O objetivo é retirar as pessoas contaminadas e em maior situação de risco de suas casas, para que consigam se isolar de fato. "Com as nossas características, será muito difícil isolar as pessoas", conta Gilson Rodrigues.
Além da atenção médica, os moradores de Paraisópolis também vêm contando, nas últimas semanas, com a distribuição de alimentos doados. Uma cozinha foi montada em um centro comunitário da prefeitura, e ali são preparadas diariamente entre 1.500 e 1.800 marmitas, que são distribuídas às famílias mais vulneráveis. Somente neste sábado foram 140 kg de arroz e quase 40 kg de feijão.
"De carne nem nós sabemos ao certo, usamos o que há disponível para que sempre haja proteína nas alimentações", conta Juliana da Costa, colega de Rodrigues e responsável pelas marmitas.
Quem define quem receberá o auxílio são os chamados "presidentes de rua", uma função definida pela associação de moradores com voluntários responsáveis, cada um, por 50 domicílios, com a função de mitigar os impactos do novo coronavírus na comunidade. Segundo Rodrigues, a experiência é replicada em 360 outras favelas do país.
"Nós estamos aqui tentando reduzir os impactos da crise econômica e sanitária que já está atingindo boa parte da comunidade e que ainda fará a classe média passar pelo que nós passamos todos os dias", conclui.
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