O incêndio e o subsequente desabamento de um prédio de 24 andares no centro de São Paulo nesta terça-feira foram uma "tragédia anunciada" pela falta de sistemas de proteção antifogo, por falta de ação do poder público e pela estrutura mista de concreto e aço do edifício, menos resistente ao fogo.
A análise é do professor de engenharia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e especialista na área há 30 anos, Paulo Helene.
Projetado nos anos 1960 para uso comercial, o edifício Wilton Paes de Almeida já funcionou como sede da Polícia Federal e do INSS. Abandonado há pelo menos 17 anos, ele foi ocupado irregularmente diversas vezes. Nos últimos anos, servia como residência a mais de 90 famílias, que pagavam mensalidade ao Movimento Luta por Moradia Digna.
Além das particularidades decorrentes da ocupação - a retirada dos elevadores e o acúmulo de material inflamável, por exemplo -, afirma o especialista, características estruturais da construção acabaram favorecendo a expansão do fogo e o desmoronamento.
A estrutura mista de aço e concreto era uma delas.
"O prédio tinha um núcleo central de elevadores e escadas em concreto. Os demais eram pilares metálicos, com resistência bem menor ao fogo. Essa pode ser uma das explicações para ele ter caído tão rápido", diz o professor.
As informações sobre a estrutura são baseadas na tese de doutorado Edifícios de Escritório na Cidade de São Paulo, do pesquisador Roberto Novelli Fialho, publicada em 2007 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU/USP).
Na época em que o Wilton Paes de Almeida foi construído, nos anos 1960, boa parte dos prédios no Brasil era feito apenas de concreto, que funciona como uma espécie de isolante térmico e, portanto, dificulta a disseminação de focos de incêndio.
Com o tempo - e o desenvolvimento da indústria siderúrgica nacional -, a construção passou a incorporar estruturas metálicas nos edifícios. "Era uma concepção até moderna para a época", diz o engenheiro.
O problema, ele pondera, é que a estrutura praticamente não tinha elementos de proteção térmica - argamassa com cimento de amianto, revestimento com gesso, pintura intumescente - desenvolvidos justamente para proteger os materiais metálicos, que têm um coeficiente de transmissão térmica bastante superior à do concreto e facilitam a expansão de eventuais incêndios.
"Na época em que o prédio foi construído, não existia proteção térmica como existe hoje - e que sabemos que é importante. Era uma estrutura que não estava protegida adequadamente contra incêndios", acrescenta Helene.
De acordo com normas nacionais e internacionais de segurança, segundo ele, prédios dessa altura deveriam resistir sem desabar, em caso de incêndio, por pelo menos três horas, ou 180 minutos - tempo estimado para evacuação e para viabilizar as ações de salvamento por parte dos bombeiros. "Mas esse edifício colapsou antes de 1 hora e meia, ou seja, resistiu apenas por cerca de 90 minutos."
O caso é apontado como "um dos raros na história em que uma estrutura de concreto armado" foi abaixo ao pegar fogo. "Normalmente, o prédio queima, mas não cai", observa Helene, que também é ex-presidente da Associação Latino-Americana de Patologias das Construções (Alcont).
"Como aconteceu em dois dos incêndios mais emblemáticos em São Paulo: o do edifício Andrauss, que pegou fogo por 4 horas, em 1972, e não desabou, e do Edifício Joelma, em 1974, que resistiu a 6 horas e meia de incêndio".
O projeto inadequado para o atual uso e a falta de sistemas fundamentais para prevenção, combate e fuga em casos de incêndios, afirma, também podem ajudar a explicar a proporção que o caso atual tomou.
Experiência em outras ocupações
O professor participou como voluntário, em 2011 e 2015, de trabalhos para reforçar a estrutura de dois prédios ocupados em São Paulo que estavam deteriorados e com riscos de desabamento.
Em um deles, o Edifício União, que tem sete andares e abriga 41 famílias, ele conta que foram necessários reforços estruturais, reparos na parte elétrica e a substituição do telhado, por exemplo, "para evitar um colapso".
O prédio foi abandonado inacabado durante a construção, nos anos 60, e desde os anos 80 está ocupado, usado como moradia.
Ele foi reformado com a ajuda de doações e com o trabalho dos próprios moradores, que receberam treinamento e supervisão de voluntários mobilizados pela professora Maria Ruth Amaral de Sampaio, ex-diretora da FAU/USP.
"Eu não sou a favor de ocupações, mas uma vez o fato consumado o Estado tem de estar presente, retirando essas pessoas e devolvendo as condições normais ao edifício, ou dando assistência a elas, porque a situação desses edifícios coloca em risco toda uma vizinhança", diz Helene.
No caso do edifício incendiado nesta terça-feira, ele diz que "os próprios bombeiros e a prefeitura reconheceram que não havia as condições necessárias de proteção, mas não adianta dizer isso e não fazer nada".
"A falha está aí. Têm que ser tomadas providências. Ou reintegra a posse ou, se não tem solução quanto à ocupação, é preciso ajudar essas famílias. Isso é papel do Estado, mas quem está fazendo são indivíduos, ONGs e universidades, como voluntários. Há omissão do Estado. A prefeitura não entra nesses prédios. O Estado não entra".
Ele classifica o Edifício União, que ajudou a reestruturar, como "um dos casos típicos da ausência do Estado".
Em uma outra ocupação, de um antigo escritório do INSS na rua Alvado de Carvalho 427 - conhecida como ocupação 9 de Julho - ele deu orientações aos moradores, em palestras e visitas ao local, sobre os reparos que deveriam ser feitos na estrutura.
"Ajudar essas pessoas é uma questão humanitária e de vizinhança".
Proteção fundamental
Entre os elementos que aponta como essenciais em edifícios do porte do Wilton Paes de Almeida estão extintores, caixa d'água com reserva de água extra, chuveiros automáticos ou "sprinklers" - acionados em caso de fogo - e a compartimentação dos espaços, ou seja, a presença de divisórias de alvenaria de concreto internas, que ele diz que não existiam no prédio que caiu.
Também faltavam nele alarmes para alertar os moradores.
"Esse prédio era um grande salão aberto, aparentemente sem paredes internas de alvenaria e sem esses sistemas de proteção suplementares que impediriam que o fogo se espalhasse rapidamente", diz Helene, reforçando a explicação do Corpo de Bombeiros de que os "buracos" deixados pela retirada dos elevadores funcionaram como chaminés, também contribuindo para o fogo passar de um andar para outro.
Prédios com mais de cinco andares, em que o acesso de escadas e mangueiras dos bombeiros é mais difícil, exigem atenção redobrada, reforça.
"Tanto faz se é edifício de luxo, popular ou de ocupação, tem o básico que é preciso atender."
Verificar a adequação das instalações elétricas periodicamente, segundo o especialista, é uma das precauções básicas.
"Um edifício de 30, 40 anos, por exemplo, foi projetado para certa carga elétrica, mas essa carga muda. Mais equipamentos passam a ser utilizados pelos moradores e é preciso assegurar que esse sistema suporta as demandas atuais".
O adequado, afirma, seria que a parte elétrica fosse avaliada a cada 10 ou 20 anos por um especialista.
Em intervalos mais curtos, ele explica que é preciso checar se os extintores têm carga e estão dentro da validade, se as portas de proteção contra incêndio - as chamadas portas corta-fogo das escadarias - funcionam, se as escadas estão liberadas para uso, se as caixas d'água reserva estão funcionando e se as mangueiras do prédio estão eventualmente ressecadas e precisam ser substituídas.
Os prazos de verificação nesses casos variam de 1 a 5 anos.
Prédio seguro
Segundo o professor, "os três elementos fundamentais para tornar um prédio seguro são um projeto estrutural adequado, com o conceito correto de robustez e de proteção contra incêndio, uma construção que tenha o programa de controle e garantia de qualidade (ISO 9000), com acompanhamento da execução com registro de operações, procedimentos, controle de materiais e treinamento de pessoal, e o uso (manutenção) adequado desse espaço".
Dentro de casa, o fogão, possíveis botijões de gás e a área elétrica estão entre os pontos que mais exigem atenção, segundo o especialista.
Botijões comprados a preços mais baixos e já desgastados, sem espessura de "parede" suficiente para proteger contra uma eventual explosão são potencialmente perigosos.
Chuveiros a gás, que podem ter vazamentos, tomadas sobrecarregadas e equipamentos elétricos, com defeito ou não, devem ser usados com cuidado e passar por manutenção, quando necessário, para evitar problemas.
No caso de edifícios residenciais de luxo ou de uso especial, como restaurantes, casas de festa e boates, a recomendação quando se busca materiais de construção novos no mercado é evitar revestimentos derivados de petróleo e de plástico, que são inflamáveis e liberam uma fumaça tóxica que ele classifica como "muito agressiva e capaz de matar mais do que o fogo".
Um tipo de revestimento à base de plástico, lembra, era usado na boate Kiss, em Santa Maria (RS), onde mais de 200 pessoas morreram em 2013, e também no edifício Grenfell, em Londres, na Inglaterra, que foi destruído por um incêndio deixando dezenas de mortos, em 2017.