Para parte das crianças do Rio de Janeiro (RJ) e Uberaba (MG), o Dia das Crianças deste ano foi comemorado com fardas e armamentos em mãos. Nas redes sociais, imagens mostram policiais e militares expondo armas em eventos e fazendo, até mesmo, simulações de ‘operação’ com os pequenos. Inquietas com a exposição dos menores, entidades se reuniram para cobrar o presidente Jair Bolsonaro e os respectivos governadores sobre os ocorridos.
No último dia 12, durante atividade da Polícia Militar no Centro de Educação Física e Desportos, na zona oeste do Rio de Janeiro, foram divulgadas fotos de crianças vestindo fardas da corporação e, em vídeo, três menores aparecem segurando simulacros de fuzis.
Já em Uberaba (MG), a prefeitura organizou um evento de Dia das Crianças que contou com estandes das polícias expondo armamentos pesados e munições, incluindo momentos de interação do público com bombas de gás lacrimogêneo. O evento, chamado de Tempo de Brincar, teve participação do Exército, das polícias Militar, Civil e Penal, assim como da Guarda Civil Municipal e do Corpo de Bombeiros.
Um dia depois das festividades, organizações que atuam em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes se uniram e enviaram uma notificação extrajudicial direcionada a Jair Bolsonaro (PL), o chefe do Executivo Federal. O mesmo foi feito ao governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e a Cláudio Castro (PL), do Rio de Janeiro - ambos reeleitos no primeiro turno das eleições.
“Nós entendemos que essa vinculação é absolutamente ilegal, porque expõe um constragemento a propria criança e viola o princípio da proteção integral, no que diz respeito ao desenvolvimento em um ambiente saudável”, ressalta o advogado Carlos Nicodemos, que redigiu o documento junto à advogada Fernanda Cunha, em entrevista ao Terra.
Nicodemos é o atual presidente da Comissão de Direito Internacional da OAB-RJ e já atuou presidindo o Conselho Estadual da Criança e do Adolescente entre 2009 e 2010, assim como o Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA) em 2015 e 2016.
Esclarecimentos
A Prefeitura de Uberaba foi procurada pelo Terra e se posicionou informando que “foi expressamente recomendado, à organização do evento, que não houvesse exposição de armamentos” e que essa recomendação não chegou até as corporações.
“As forças de segurança pública vieram até a Prefeitura solicitar espaço para que pudessem fazer uma interação com a comunidade, usando os mascotes e cães numa ação de valorização do amigo protetor, com o propósito de afastar o medo, culturalmente imposto nas crianças, sobre o trabalho delas”, explica a administração municipal, em nota.
O evento Tempo de Brincar é organizado anualmente, mas a Prefeitura de Uberaba acredita que a situação tomou “proporções ainda maiores” por conta do período eleitoral. “Politizar esta situação só mostra a intenção de forças políticas contrárias”, se manifesta.
A atual prefeita de Uberaba é Elisa Araújo (Solidariedade). No último dia 10, dois dias antes do ocorrido na cidade, ela publicou um vídeo declarando apoio a Jair Bolsonaro (PL) nas eleições à Presidência da República.
A reportagem também tentou entrar em contato com as polícias Militar, Civil e com o Exército, mas não obteve retorno.
Com relação ao Rio de Janeiro, a Polícia Militar, que organizou o evento, se posicionou informando que “as crianças tiveram a experiência de vivenciar um pouco do trabalho de seus pais” e que “as atividades foram integralmente acompanhadas por supervisores e pelos próprios responsáveis”.
A PM fez ampla divulgação das atividades nas redes sociais das forças policiais, com imagens que expõem os rostos das crianças. Mas perguntas sobre os equipamentos expostos, a quantidade de crianças que participaram das atividades e procedimentos de segurança não foram respondidas ao Terra.
Governo já estava avisado
As notificações extrajudiciais enviadas um dia após os ocorridos, relembram o comunicado emitido ao Brasil pelo Comitê sobre Direitos das Crianças da ONU, há um ano, que clamou para que o país suspendesse “imediatamente e urgentemente o uso de crianças vestidas com trajes militares para qualquer finalidade”, removendo imagens de circulação.
O comunicado de 2021 também criticou a relação do uso de crianças em quaisquer atividades relacionadas a conflitos, envolvendo os menores em hostilidades reais ou simuladas. “Tais práticas devem ser proibidas e criminalizadas, e aqueles que envolvem crianças nas hostilidades devem ser investigados, processados e sancionados”, declarou o comitê da ONU.
Na época, as declarações foram dadas em resposta a um ato público de Jair Bolsonaro (PL), que usou uma criança fardada com uniforme da Polícia Militar e uma arma de brinquedo, em um evento em Belo Horizonte. Além disso, o político já foi visto outras vezes expondo os pequenos a situações do tipo, como quando 'ensinou' gestos de armas a crianças.
Visto o histórico, as notificações extrajudiciais emitidas, que a reportagem teve acesso, reforçam o pedido de que os governos não exponham crianças e adolescentes a armas e armamentos, sejam reais ou simulados. Também é solicitado, ao Rio de Janeiro e Minas Gerais, que as crianças envolvidas nos episódios sejam encaminhadas ao Conselho Tutelar, para que sejam aplicadas medidas cabíveis.
Em caso de descumprimento
Se os pedidos das notificações não forem levados em consideração, os advogados explicam que será acionado o protocolo número três vinculado ao Comitê de Crianças da ONU, que possui caráter investigativo em meio a violações sistêmicas de qualquer direito de crianças e adolescentes por parte do Estado.
A notificação extrajudicial foi assinada por cinco iniciativas, o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), Associação de Ex-Conselheiros e Conselheiros da Infância (AECCI), Organização de Direitos Humanos Projeto Legal, Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e Adolescente, e pelo Fórum Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (FDCA-RJ).
Por enquanto, até a publicação desta reportagem, as entidades tiveram retorno apenas da Presidência da República, que confirmou o recebimento dos materiais. Pela natureza do assunto, foi informado que a notificação extrajudicial foi encaminhada à Subchefia para Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral da Presidência da República e à Assessoria Especial do Presidente.
Ao Terra, o Governo de Minas Gerais afirmou ter recebido o documento. A partir disso, o governador solicitou esclarecimentos aos envolvidos e diz aguardar informações para considerar e avaliar possíveis medidas cabíveis, se as julgar necessárias. Além disso, em nota, o governo complementou que “reitera sua postura em defesa dos direitos das crianças e adolescentes e informa que continuará atuando comprometido para que esses sejam garantidos e respeitados em sua plenitude”.
O Terra também entrou em contato com o gabinete do Governador do Rio de Janeiro, pedindo um parecer sobre o caso, mas não obteve resposta.