A artista plástica Renata Gonçalves Bernardes, de 23 anos, se somou neste sábado às cerca de duas mil manifestantes, segundo as organizadoras, ou às cerca de 100, pelos cálculos da Polícia Militar, para pedir que a mulher tenha o direito sobre o próprio corpo caso decida abortar. Um detalhe: Renata está grávida de sete meses de uma menina e contou não saber, até hoje, se a escolha por levar a gestação adiante foi realmente dela.
“Tenho a sorte de ter uma família que me ama e me compreende, mas, até hoje, confesso que não sei o quanto essa decisão [sobre não abortar] foi realmente minha, mesmo com essas pessoas ao meu lado. Vou ter uma menina e quero que ela seja tão livre para escolher o próprio destino quanto eu – muito mais livre do que eu”, declarou, ela que disse ter conversado com a família "religiosa" do pai da criança, que é colombiano, antes de tomar a decisão.
O depoimento da jovem, com os seios e barriga à mostra, foi um dos vários que permearam a 5ª edição da Marcha das Vadias, que foi realizada hoje em São Paulo e em outras brasileiras e teve, como temática central, a legalização do aborto. Na capital paulista, as manifestantes deixaram o vão do Masp pouco depois das 14h e seguiram em marcha, pacificamente, pela rua Augusta, até a praça Roosevelt. Na Augusta, meninas picharam a parede de uma boate onde teria havido um estupro semanas atrás. O caso, porém, foi arquivado pela Polícia Civil após a suposta vítima negar o crime.
Na praça, manifestantes da organização da marcha leram depoimentos de mulheres que realizaram aborto e sofreram, ou não, as consequências pelo ato – alguns, fruto de gravidez de alto risco. Um desses casos foi o de uma jovem de São Bernardo do Campo, a qual, mãe de um menino de quatro anos, foi abandonada pelo namorado após descobrir que estava grávida novamente. Conforme o relato, ela tomou pílula abortiva, passou mal, foi ao médico e acabou denunciada por ele, e indiciada pela Polícia Civil. “Que contradição: aborto é crime, homofobia, não!”, gritaram as manifestantes, em coro.
Outro caso foi a de uma estudante de 15 anos, que, ao microfone, disse não só já ter uma vida sexual ativa, como já ter feito uso de pílula do dia seguinte. “Sou evangélica, morria de medo de falar para minha mãe que eu já tinha começado a ter relações sexuais. Mas aí eu pensava: ‘E daí, Deus, que eu transei? Você não me ama do mesmo jeito?’”, relatou.
Militante da marcha desde outras edições, a advogada Renata de Paula, de 26 anos, explicou que o tema deste ano bate de frente com o que ela chama de “onda de conservadorismo que toma conta do País e do Congresso”. “A gente está vendo uma virada conservadora muito perigosa não só na sociedade como um todo, mas no Congresso, que parece esquecer que o Estado deve ser laico (ou seja, separado de religião). As mulheres vêm fazendo conquistas nos últimos anos, mas a legalização do aborto é uma causa antiga e ainda espera uma resposta”, definiu.
No trajeto até a praça, as manifestantes, que entoavam gritos também contra o machismo, tiveram um princípio de confusão com um rapaz que reclamou de parte delas estarem com os seios expostos. Ele foi convencido por um grupo de mulheres a pegar uma via alternativa até a Paulista – no caso, a Peixoto Gomide. Perto dali, um ambulante que se identificou como “Manuel das Redes”, de 42 anos, da Paraíba, riu do episódio. “Se a mulher quer mostrar os seios, ela que mostre – ele por acaso não sabe que isso existe?”, indagou. E o que pensa sobre a bandeira da legalização do aborto levantada pela marcha? “A mulher é quem conduz a gestação, não a gente. Ela tem que fazer o que ela própria achar que deve”, respondeu. Na hora de fazer foto para a reportagem, o ambulante recuou: “Na minha terra, vão me encher o saco se virem isso e o que eu falei”, riu. Ele está em São Paulo há três meses, mas voltará para casa.
Também na rua Augusta, um grupo de homens filmava com celular a marcha e as mulheres mais desnudas. Questionado sobre o porquê, o mestre de obras Antônio Marques das Neves, de 48 anos, resumiu: “Vou mostrar ao meu filho e ao meu neto o que as mulheres estão exigindo que é direito delas”, justificou. “É sobre a violência, né? Sobre direito ao aborto também, não?”, perguntou. “Sim. E o que senhor pensa sobre o direito ao aborto?”, quis saber a reportagem. “Aí sou leigo para responder, mas acho que depende de cada caso”, desconversou.
"Protagonismo é todo delas", diz fotógrafo cego pela PM
Ao fim da marcha, um rapaz com uma câmera às mãos conversava com outros colegas e recebia a brincadeira de que, logo, logo, eles tomariam o lugar dele – pela “qualidade” das fotos que haviam feito com o celular. O jovem é o fotógrafo Sérgio Silva, de 33 anos, que perdeu a visão de um olho graças a um tiro de bala de borracha disparado pela PM durante os protestos de junho de 2013, pela redução das tarifas de transporte coletivo. Silva estava na mesma região de onde ocorria a marcha de hoje, à época, a trabalho.
O Terra quis saber: um dia depois de um PM agredir uma mulher durante um protesto, e sendo ele mesmo, Silva, uma vítima de violência policial, o que, de fato, mudou, e não apenas para a causa feminista?
“Acho que a violência contra a mulher não me parece ser algo que uma instituição específica pregue, e sim, algo enraizado em uma sociedade ainda machista. Mas a polícia agir assim até contra uma mulher, eu acredito, deixa explícito o quanto a violência que alguns deles cometem independe de sexo, raça ou classe social”, definiu. Por outro lado, Silva se disse otimista com a quantidade de mulheres que viu filmando ou fotografando a marcha – redutos em que a presença de profissionais homens já foi mais maciça. Ele, mesmo, estava fotografando a marcha. “Hoje o protagonismo é todo delas. Acredito que isso está mudando, ainda bem".
Colaborou com fotos para esta notícia o leitor Diego Torres, de São Paulo (SP), que participou do vc repórter, canal de jornalismo participativo do Terra. Se você também quiser mandar fotos, textos ou vídeos, clique aqui ou envie pelo aplicativo WhatsApp, disponível para smartphones, para o número +55 11 97493.4521.