A Rua Piauí, em Higienópolis, bairro de classe alta na zona central de São Paulo/SP, viu a sua calmaria ir pelos ares nos últimos dias após a divulgação do passado da moradora do Nº 1111. A história de Margarida Bonetti, ou a "mulher da casa abandonada", revelada pelo podcast de mesmo nome da Folha de S.Paulo, tem indignado e mobilizado as pessoas a visitarem o local.
A reportagem do Terra esteve no endereço e viu de tudo, desde pessoas tirando fotos sorrindo a pessoas gritando xingamentos. Em geral, muitos, mas muitos curiosos.
Praticamente não há um carro que não passe pela rua e, no mínimo, diminua a velocidade. Muitos param e tiram fotos de dentro do veículo mesmo.
"Olha que a Mari vai pegar vocês", diz uma mulher gritando dentro de seu carro.
Margarida se apresentava como Mari para os vizinhos desavisados de sua história e evitava ao máximo que soubessem sobre o crime que praticou durante 20 anos nos Estados Unidos. Ela é acusada de manter uma empregada doméstica brasileira em condições análogas à escravidão, entre 1979 e 1998. O marido Renê Bonetti também participou do crime.
Ainda na condição de investigada, Margarida deixou os EUA no final da década de 1990 e se instalou na casa em Higienópolis até a última semana. Vivendo em condições precárias em uma casa caindo aos pedaços em um dos bairros mais ricos do País, a mulher chamou a atenção e teve sua identidade revelada nas últimas semanas.
Com a explosão do caso e cada vez mais pessoas em frente ao imóvel, ela deixou a residência na última semana. A reportagem do Terra apurou que a fuga de "Mari" ocorreu na manhã da última sexta-feira (1).
Mesmo assim, o clima no bairro não é bom. Os ex-vizinhos de Margarida não parecem muito satisfeitos com o fim da tranquilidade habitual. Poucos aceitaram conversar e nenhum quis gravar entrevista. Em todo o período que a reportagem esteve na Rua Piauí, cerca de 2 horas e 30 minutos, não houve um momento em que a calma reinasse.
Protestos
O muro pichado com a palavra "Escravocrata" e a frase "Qual será o segredo da mansão?" demonstra a revolta de parte das pessoas que vão ao local nos últimos dias. A pesquisadora em educação Juliana de Paiva Costa acredita que o local não deveria ser um espaço para selfies e sorrisos.
"Eu, como uma mulher negra, não tenho como passar na frente desta casa sem vontade de chorar, sem ter a garganta entalada, sem ter o peito apertado, porque, infelizmente, essa casa não representa uma exceção, mas uma regra do que acontece nesse País, que tem marcas coloniais tão profundas", avalia.
"Me choca muito a naturalização do racismo no Brasil, mesmo quando ele é escancarado, como nesse caso. Enquanto tem gente tirando selfie na frente da casa, eu continuo com vontade de chorar", completa.
Além das pessoas que vão ao Nº 1111 da Rua Piauí para demonstrar sua indignação, outras vão pela curiosidade, para ver de perto a casa tão bem descrita no podcast "Mulher da Casa Abandonada". O administrador Lucas Fonseca, de 26 anos, conta que ouviu três vezes os cinco episódios já lançados, e que esta é a segunda vez que vai até a casa.
Detalhe: ele se deslocou por uma hora, de carro, de Guarulhos, na Grande São Paulo, só para visitar o endereço.
"Estou sonhando com essa história. Decidimos passar aqui para ver de perto, porque sempre passei por essa região e essa casa me chamava a atenção, mas nunca imaginei que havia uma moradora. Conheço pessoas que moram aqui na região e elas me diziam que era uma moradora de rua. Viam ela revirando o lixo", disse ele, empolgado.
Diversos motivos levam as pessoas até a Rua Piauí, mas chama a atenção o que levou a corretora de imóveis Debora Ambrósio, que saiu da Mooca, zona leste de São Paulo, só para ver a casa de perto. Emocionada, ela conta ao Terra que viveu em um imóvel parecido, também abandonado, por dez anos.
"Eu vi a minha vida. Passei dez anos em uma casa abandonada como essa. Fui abandonada pela minha família, sozinha, e cheguei pesar 175 kg.", disse a proprietária de uma imobiliária. "Vim aqui para lembrar da minha história. Mas o caso dela é diferente do meu, ela teve uma história maligna. A pessoa paga o que fez, é um processo de retorno".
Durante a apuração da reportagem, um drone começou a sobrevoar a casa. O piloto tentava filmar o interior da residência através de uma janela. Depois da insistência, decidiu fez imagens do quintal e do telhado. O péssimo estado em que o imóvel se encontra é mais um chamariz para curiosos de todas as partes.
Velhos conhecidos
Até a equipe de remoções e podas de árvores da Prefeitura de São Paulo, sim, aqueles mesmos do podcast, foi visitar a casa abandonada. A equipe, que Margarida Bonetti tentou impedir que cortasse a árvore no último dia 23 de dezembro, já chegou brincando. Um dos funcionários, ainda dentro do caminhão gritou: "Nós vamos remover essas árvores agora, aí ela vai aparecer".
Em seguida, eles foram até a frente da casa para gravar vídeos e fazer fotos no local.
"Liga a motoserra que ela aparece", brincou outro.
O episódio que liga os funcionários a Margarida é relatado logo nos primeiros minutos do podcast. Na passagem narrada por Chico Felitti, apresentador e criador da série, ela tenta impedir a poda de uma árvore nas vésperas do Natal de 2021. Essa foi a primeira vez que os homens voltaram ao local após o conflito.
A mulher da casa abandonada pode ser presa?
Ninguém sabe para onde foi a mulher da casa abandonada. Porteiros de prédios vizinhos relataram que ela deixou o imóvel acompanhada de uma irmã, que foi buscá-la.
Mas uma pergunta ainda não foi respondida: depois de quase trinta anos, ainda é possível que Margarida Bonetti seja presa?
Segundo Clarissa Höfling, advogada criminalista e especialista em direito penal e processo penal, Margarida poderia, sim, ser investigada no Brasil, já que a legislação determina que os crimes cometidos por brasileiros no exterior também ficam sujeitos à nossa lei.
Mas uma prisão, acrescenta Clarissa, só é aplicável sob algumas condições. Por exemplo, risco à ordem pública.
"Ainda é possível instaurar investigação no Brasil, porém, só caberia prisão caso ela incida em uma das condições para tanto, segundo a lei brasileira, isto é, dê motivos para a decretação de uma prisão preventiva (risco à ordem pública ou para assegurar a aplicação da lei penal). Ou caso haja condenação no Brasil transitada em julgado", diz a advogada.
Outra dúvida das pessoas que acompanham o caso é se as autoridades norte-americanas poderiam fazer alguma operação em solo brasileiro para capturá-la. Neste caso, Clarissa Höfling explica que não é possível, por incorrer em violação de regras internacionais
"Caso ela tivesse sido condenada nos Estados Unidos, não poderia ser extraditada, pois a Constituição Federal brasileira veda a extradição de brasileiro em caso de prática de crime comum", conclui.
*Com edição de Estela Marques.