A zeladora Eva Lúcia Gonçalves, de 41 anos, saiu de Fortaleza para tentar uma vida melhor em São Paulo há pouco mais de oito anos. Inicialmente moradora de São Miguel Paulista, extremo leste da capital, hoje Eva mora em um prédio do Jardim Paulistano, área nobre na zona oeste que, sozinho, se não fosse um bairro, ostentaria nada menos que a terceira colocação no ranking de IDHs (Índices de Desenvolvimento Humano) entre todos os municípios do Brasil. O prédio em que ela mora, porém, é o mesmo onde é zeladora – e o qual ajudou a ocupar, com outros quase 150 sem-teto, na sexta-feira de Carnaval. A construção, avaliada em R$ 18 milhões e localizada na Marginal Pinheiros, integra a massa falida do Banco Santos, de Edemar Cid Ferreira.
O banco teve a falência decretada pela Justiça paulista em setembro de 2005, no ano seguinte à intervenção realizada pelo Banco Central (BC) na instituição. À época, o BC constatou um rombo que superava R$ 2 bilhões e, diante de supostas irregularidades de gestão e contra o sistema financeiro, afastou Ferreira e outros diretores do comando da instituição e nomeou um interventor. Desde então, o grupo foi alvo de ações e condenações, e bens de Cid Ferreira foram levados a leilão para que créditos do banco fossem recuperados e divididos entre credores e correntistas prejudicados com a quebra da instituição.
O prédio ocupado no Jardim Paulistano tem 12 andares e ainda não foi terminado. A construção seria uma das sedes de escritórios do Banco Santos. Ele integra um rol de um total de seis imóveis que podem ser levados a leilão ainda neste ano, após um processo de análise das avaliações por que passaram. Na vizinhança da construção, há pelo menos duas casas que também pertencem à massa falida.
Os sem-teto pertencem ao movimento Terra Livre, que, em sua página na internet, alegou que o imóvel estava desativado há quatro anos “sem cumprir nenhuma função social” e que, “como vários outros, serve apenas à lógica perversa da especulação imobiliária”.
Os ocupantes do edifício informam que saíram de uma área reintegrada na Barra Funda, também na zona oeste, após uma sequência de outras invasões. Entre os vizinhos, o silêncio: a maior parte dos abordados preferiu reclamar do “esqueleto” que o prédio se transformou e delegou ao administrador da massa falida qualquer manifestação sobre o assunto.
Leia, a seguir, alguns relatos de um dos coordenadores do movimento e dos sem-teto - que transformaram cada cômodo dos cinco andares ocupados (outros sete estariam completamente interditados) em uma moradia improvisada, mas dispõem de uma única torneira e um só banheiro, localizados no térreo, para todos eles.
Eva, a zeladora: “somos tratados como animais nas reintegrações”
“Vim de Fortaleza pra São Paulo em 2007, como muita gente que vem do Norte e do Nordeste achando que pode sobreviver aqui. Primeiro fui para São Miguel Paulista, mas perdi meu filho e meu marido, os dois, assassinados - meu marido, há oito meses –, e achei que acompanhar essas pessoas seria uma maneira de não enlouquecer. Estamos todos juntos, quando ocupamos e quando a polícia cumpre as reintegrações e nos trata como animais. Eu mesma já inalei muito gás pimenta. Duvido que façam isso com bandidos perigosos, sabe, duvido.”
Fabrício Silva, 20 , estudante e coordenador: prédio vazio em área rica “é contradição”
“Estudo Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e moro na Vila Madalena, pois meu pai mora no prédio onde é zelador. Há anos que o problema da habitação não é resolvido, há anos que favelas pegam fogo, ou que as histórias se repetem. Esse prédio (da massa falida do banco) estava há anos desocupado, sem cumprir sua função social, e isso não deixa de ser uma contradição: como um bairro tão nobre, com um dos maiores IDHs da cidade, fica nessas condições com tanta gente nas ruas sem moradia? É uma ocupação emergencial, mas é preciso que o Estado intervenha e alugue ou que forneça um aluguel social a essas famílias. E perto de infraestrutura urbana, não longe, nas periferias, porque isso acaba depois ficando mais caro para o próprio poder público.”
Adriana Sanchez, 36, recicladora: “é uma humilhação cada vez que temos que sair”
“Estou na quarta ocupação desde que saí de casa, na Freguesia (do Ó, zona norte de São Paulo), depois de desentendimentos familiares. Acho uma humilhação cada vez que temos que sair. É só xingamento. Nessas horas, eu penso nos meus familiares que estão por aí e são ou delegado de polícia, ou advogado, até jogador de futebol: será que os PMs que nos tiram dessas áreas não imaginam que pode ter algum parente deles ali mesmo, entre os sem-teto? E outra: será que meus parentes, de alguma forma, não ajudaram a construir a riqueza de gente como a que era dona desse prédio?”
Ruana Vieira, 22, desempregada: “minha mãe morreu sem conseguir uma casa”
A gente acaba desorganizando a nossa vida com essas ocupações, não é tão simples quanto as pessoas pensam. Cada vez é preciso achar creche e escola para os filhos, ou então é preciso arrumar transporte, que é caro, sem contar água e alimentação, que também não custam pouco. Vim da Paraíba já faz tempo e estou na terceira ocupação. Minha mãe lutava nessa causa e morreu sem conseguir ter uma casa.”
Danieli Cabral, 34, publicitária e vizinha ao prédio: "é um absurso invadir"
“Não estou de acordo com essa ocupação porque se trata de propriedade privada. É um absurdo invadir. Não sei qual o critério de essas pessoas escolherem um ou outro prédio, sei que sempre estão com algum advogado [as respaldando]. O centro tem tantos prédios desativados, que acho que a prefeitura e o governo podiam investir para ajudar as pessoas que realmente precisem de moradia – que eu acredito ser de 10% a 15% dos que geralmente invadem.”
Procurados, representantes da massa falida do Banco Santos informaram já ter entrado com pedido de reintegração de posse a fim de que o leilão do prédio, juntamente com os dos outros cinco imóveis do ex-banqueiro, não seja prejudicado. A previsão dos administradores é que essa venda ocorra em até 90 dias.