Mulheres arredias, tristes, desconfiadas de tudo e de todos, e, não raro, desfiguradas ou com marcas pelo corpo – por dentro e por fora. A cena poderia descrever um cenário de pós-guerra, mas está bem presente é no coração da cidade de São Paulo. Essas mulheres, sobreviventes em outra medida, foram vítimas de violência doméstica praticada por filhos, companheiros e maridos e estão no alvo de um programa que tenta garantir o cumprimento de medidas protetivas definidas pela Justiça e nem sempre respeitadas pelo agressor.
O projeto, que leva o sugestivo nome de “Guardiã Maria da Penha”, se propõe a fazer aquilo que o nome designa: resguardar que as aplicações da lei Maria da Penha sejam cumpridas pelos algozes dessas vítimas.
Implementada desde maio do ano passado em fase piloto, a iniciativa é fruto de parceria entre o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), do Ministério Público de São Paulo, e a Prefeitura, por meio das secretarias municipais de Política para as Mulheres e de Segurança Urbana. Uma vez informada pelo Gevid sobre os casos em que há medidas protetivas designadas por um juiz, a Segurança Urbana os repassa a equipes da Guarda Civil Metropolitana (GCM), com detalhes sobre o processo e o boletim de ocorrência que o originou.
Por enquanto, apenas duas equipes com viatura estão nas ruas – uma terceira começa a trabalhar nas próximas semanas. Pelos números da Segurança Urbana, 40 vítimas estão sob monitoramento nos mais de 4 mil atendimentos efetuados desde junho de 2014. Pelos números do Tribunal de Justiça de São Paulo, a demanda é grande: só ano passado, as varas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher determinaram, só na capital, 9.780 medidas protetivas - média de quase 27 por dia.
Treinados especificamente para esse tipo de atendimento, os GCMs vão até o endereço da vítima verificar se a medida protetiva tem sido cumprida pelo agressor. O horário das inspeções não é avisado, e, dependendo da gravidade do caso, elas são diárias. Desde junho, quando duas equipes foram às ruas do centro de São Paulo, quatro agressores foram presos por descumprirem, por exemplo, ordens judiciais para que mantivessem distâncias de suas ex-mulheres ou companheiras.
As medidas de proteção são estabelecidas pelo artigo 22 da Lei Maria da Penha, a qual completa nove anos de sanção em agosto. Dentre elas, o juiz pode determinar desde que o agressor se afaste da casa ou de qualquer outro local de convivência da vítima e de seus familiares, bem como que se abstenha de qualquer tipo de comunicação com ela e seus familiares. Se o denunciado tiver porte de arma, uma das medidas também determina que esse direito seja suspenso ou restrito.
Distância mínima não é cumprida, alerta promotora
Segundo a coordenadora do Gevid, promotora Silvia Chakian, a distância mínima de 300 metros a 500 metros especificada pelo Judiciário nem sempre é respeitada. “Sentimos a necessidade urgente de resguardar isso, daí a importância desse projeto. Esses GCMs são treinados sob a perspectiva de gênero, que tem uma dinâmica diferente de violência”, definiu.
Conforme a promotora, que há cinco anos milita na causa, a ideia é que, tão logo um juiz estabeleça a medida protetiva, a vara criminal em que a decisão foi emitida comunique o Gevid para que o grupo repasse o caso à GCM, que iniciará as visitas de fiscalização e orientará a vítima a buscar a rede de atendimento à mulher – entre os quais, os Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
“Nenhuma mulher apanha porque gosta”
O número de atendidas da fase piloto do Guardiã Maria da Penha ainda é baixo para a realidade de milhares de casos de violência doméstica registrados em São Paulo – da ordem de 7 mil, aproximadamente, apenas na região central, e outros 12 mil apenas em São Miguel Paulista, no extremo leste da capital. As estimativas são do Gevid.
“Nenhuma mulher apanha porque gosta – ninguém é feliz em um ciclo de violência. Ainda falta a sociedade compreender isso e deixar de marginalizar essa mulher; também falta deixar de reforçar alguns mitos como o de que ‘em briga de marido e mulher, não se mete a colher’”, destacou a promotora, para quem é necessário haver a compreensão das “circunstâncias que permeiam a violência doméstica”.
“A vítima, em geral, sofre vários episódios de violência até pedir ajuda. É uma questão delicada: envolve uma pessoa que um dia ela amou, envolve uma sociedade patriarcal, muitas vezes de expressões machistas por homens e até por mulheres, envolve vergonha de se expor e até uma falta de credibilidade na Justiça. E envolve uma violência psicológica avassaladora – porque, afinal, o que acaba virando notícia é a violência que marca”, analisou.
GCM: “Machismo está enraizado, mas a gente arranca”
Na ativa desde que o projeto começou, os GCMs Marcos Antonio Pinto de Moraes e Lenilda Lacerda corroboraram as declarações da promotora. “Sempre chama muito a atenção a agressividade - da física à psicológica. Às vezes chegamos e a mulher está desfigurada, e, por dentro, está destruída”, observou Lenilda. “Atendemos gente de toda classe social – vítimas com necessidades básicas, como rede de esgoto, e gente em prédios ‘top’, mesmo, de classe média. Há desde o filho, lutador de jiu jitsu, que agride a mãe idosa, ao companheiro que bate na mulher com bolsadas na cara”, exemplificou Moraes.
Que conselhos a GCM Lenilda dá às vítimas de violência doméstica? “Que não se calem, porque o silêncio é a chave para esse tipo de agressor continuar agindo. Lidar com essas mulheres tem me tornado uma pessoa melhor, porque hoje eu consigo olhar e vislumbrar um futuro melhor para elas e saber que eu posso fazer a diferença. Ainda há muito machismo. Tem homem que chega a dizer: ‘Se ela [a vítima] fizer tudo certinho, ela não vai apanhar!’. É a cultura deles, o machismo está enraizado. Mas a gente arranca”, sorriu.
Agressões afetaram filha de dois anos, diz vítima
Um dos 40 casos monitorados pelo projeto, no centro de São Paulo, é o da estudante D.M.J., de 20 anos. Apesar de conseguir a medida protetiva contra o ex-companheiro, com quem se relacionara durante cinco anos, ela conta que ele não cumpria a ordem judicial de evitar qualquer tipo de contato.
“Não cumpria – para ele, essa medida protetiva era um nada. Continuava vindo onde eu morava, me mandava mensagens, me xingava, perguntava se eu estava saindo com outra pessoa, me telefonava com ameaças de morte... E mesmo assim, ele só está preso, há alguns meses, por tráfico de drogas, não por agressão”, relatou.
Segundo a estudante, as agressões começaram no segundo ano de relacionamento, supostamente motivadas por ciúmes, e pioraram quando ela engravidou – a ponto de ser espancada pelo então companheiro aos dois meses de gestação. O que a prendia ao agressor? “Até hoje eu procuro essa resposta. Não sei bem o porquê, mas eu simplesmente não conseguia tomar uma atitude. Talvez fosse um medo, que, depois, virou raiva”, acredita.
Como está a vida após o projeto? “Eu vivo melhor, porque pelo menos ando na rua sem medo. Voltei a estudar – eu tinha parado tudo porque ele me proibia de sair : estou na oitava série e quero fazer faculdade de direito, dar uma vida melhor à minha filha. Quero também me mudar, porque no bairro onde vivemos está a mãe do meu ex-companheiro. Não quero pensar como vai ser quando ele deixar a cadeia”, admitiu. Se um dia vai contar o que aconteceu à filha? “É um direito dela de saber, se quiser, quando crescer. Mas hoje prefiro pensar na foto da primeira festa junina de que ela participou, na escolinha: era a única criança com um rosto triste, entre várias outras. Coloquei essa foto na porta da nossa geladeira e me perguntava por que ela estava daquele jeito... Agora, com ela sorrindo nas fotos, mais tranquila e mais apegada comigo, sei o que acontecia.”
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