O Brasil não tem um cultura de prevenção e proteção contra incêndios e, por isso, tragédias que destroem edifícios históricos ou deixam dezenas de mortos tendem a se repetir no país. Essa é a avaliação de engenheiros civis e especialistas em segurança ouvidos pela BBC News Brasil.
Nesta sexta-feira (8), dez pessoas morreram em um incêndio no centro de treinamento do Clube de Regatas Flamengo, no Rio de Janeiro. Entre os mortos, estavam jogadores adolescentes que atuavam nas divisões de base da agremiação. O clube não tinha laudo de aprovação do Corpo de Bombeiros para construir o alojamento naquela área - afirma que estava regularizando a situação.
"Não temos uma cultura de prevenção de incêndios. O brasileiro é muito reativo, não proativo. Ou seja, ele não previne, ele reage. Espera ter uma tragédia como essa no Rio de Janeiro para começar a pensar no que precisa ser feito. Por que não foi feito antes?", afirma o engenheiro civil Telmo Brentano, especialista em prevenção de incêndios e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O número de mortes provocadas por incêndios no Brasil foi, em média, de 991 pessoas por ano, entre 2007 e 2016 (último ano com dados oficiais). O recorde foi em 2013, com 1.261 vítimas. Naquele ano, 242 pessoas morreram no incêndio na Boate Kiss, no Rio Grande do Sul.
"Temos uma quantidade altíssima de incêndios por vários motivos, mas que começa com a falta de consciência da população, das autoridades, das empresas, do governo, das pessoas em geral", afirma o engenheiro José Carlos Tomina, superintendente do Comitê Brasileiro de Segurança Contra Incêndio da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Embora a regulamentação seja pulverizada - as normais são determinadas por leis estaduais ou municipais - a falta de proteção, prevenção e controle não é um problema de legislação, segundo os analistas.
"A legislação brasileira está atualizada", afirma Brentano. "A lei nacional é genérica e cada Estado tem suas regras específicas. A questão é aplicar a legislação."
"As pessoas acham que o incêndio só vai acontecer no prédio do vizinho, então, temos um problema de gambiarra mesmo. Estão sempre tentando ver se não tem uma forma mais barata de resolver, abandonam as questão da prevenção e o treinamento interno", diz Brentano, que também é membro da National Fire Protection Association, dos Estados Unidos.
A maioria dos Estados tem normas similares à criada pelos Bombeiros de São Paulo, em 2001, tida como a melhor do país. "Essas normas não são perfeitas, mas, se fossem seguidas, estaríamos muito mais seguros", diz Valdir Pignatta e Silva, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do livro A Segurança Contra Incêndio no Brasil.
Para Brentano, é uma questão de gestão. "Não adianta a brigada de incêndio fazer o curso, receber o certificado e não haver continuidade."
Já Tomina explica que brigadas não servem apenas para agir quando o fogo já começou: o trabalho delas é fiscalizar os equipamentos, garantir que tudo está funcionando e orientar as pessoas sobre prevenção.
Falha humana
"Eu costumo dizer que não existe incêndio acidental", diz Pignatta e Silva.
"Um incêndio só ocorre porque houve uma falha, desconhecimento, mau uso da edificação, como uso de velas em locais com material inflamável. Há também problemas estruturais ou de manutenção. Resumindo, um incêndio não começa e não se espalha se não houver uma falha."
A opinião é compartilhada pelos outros especialistas. "Não é azar, não é caso fortuito, não é acidente. É sempre um erro humano, uma falha de alguém que fez uma coisa errada", afirma Tomina, da ABNT.
Rosaria Ono, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, aponta que as edificações brasileiras não são pensadas para evitar que o fogo comece.
"Nas casas, por exemplo, é normal encontrar botijões perto de coisas inflamáveis, ou crianças brincando com velas. Também há um cultura da gambiarra, muitas coisas ligadas em uma única tomada", explica. "Já nos prédios, há instalações elétricas ruins, sobrecargas e falta de manutenção. Veja o caso do Museu Nacional [destruído por um incêndio em setembro de 2018], houve uma evidente falta de manutenção."
Tomina cita outros exemplos: "As pessoas não tomam cuidado, deixam panela no fogo, equipamentos ligados, crianças brincando com produtos inflamáveis. Ou então colocam um 'benjamin' na tomada com vários aparelhos. Nas empresas também, fazem corta e solda sem cuidado, sobrecarregam a rede elétrica."
Muitas vezes, a preocupação com o que fazer depois do fogo começar é maior do que com a prevenção até mesmo nos Corpos de Bombeiros.
"Eles estão preparados para combater, mas muitas vezes não têm gente qualificada para conformação dos espaços, para fazer análise de projeto. Sem contar que muitas cidades nem quartel dos bombeiros têm", diz Brentano.
Mesmo as medidas de evacuação de pessoas ou para impedir que o fogo se espalhe não são bem estruturadas e falham com frequência. "É inadmissível que um incêndio que comece no 10º andar chegue ao 11º", explica Pignatta. "É preciso usar portas corta-fogo, vedar buracos, arrumar parapeitos e saídas de emergência. Muitas vezes encontramos escadas de emergência obstruídas."
Deficiência na formação de engenheiros e arquitetos
O problema se agrava porque prevenção de incêndios só se tornou disciplina obrigatória na maioria das faculdades e universidades de engenharia e arquitetura recentemente. Ou seja, não há muitos profissionais especializados na área. Uma lei sancionada em 2017 exige que a cadeira seja incluída na grade, mas poucas universidades já mudaram o currículo.
"Na PUC do RS fizemos uma disciplina, mas por iniciativa nossa, porque não era exigência curricular", afirma Brentano.
"O arquiteto, o engenheiro não ter aula de prevenção contra incêndio na formação é um sinal de como a questão é relegada no Brasil", afirma Tomina, da ABNT.
Na Politécnica da USP, por exemplo, o professor Pignatta e Silva leciona uma disciplina optativa sobre segurança contra incêndios no curso de engenharia civil. "Mas é uma aula eletiva. Ou seja, o estudante pode fazer ou não. Se não fizer, ele se forma do mesmo jeito". O mesmo ocorre na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
"Mesmo se as universidades passarem a cumprir a lei, não há muitos professores especializados nesse assunto no Brasil. Acho que somos uns dez apenas", diz.
Rosaria Ono, da FAU, afirma que a falta de profissionais especializados dificulta que processos de prenvenção sejam absorvidos nas construções ou em adaptações de edifícios muito antigos. "Os próprios arquitetos não estão preparados para implementar essas medidas", diz.
Como salvar vidas
Além das questões da infraestrutura, as simulações e testes são um fator essencial para salvar vidas. Segundo os pesquisadores, no Brasil se subestima muito a importância dos treinamentos, testes e simulações.
"Mesmo que você tenha os equipamentos em ordem, não adianta se não tiver alguém que saiba usar", afirma Brentano. "Se tiver alarme e não tiverem feito simulações - para todo mundo, não só para a brigada - ninguém vai saber o que está acontecendo e como agir."
O engenheiro afirma que escolas deveriam ter simulações pelo menos uma vez por semestre, por exemplo.
"Para escolas de primeiro e segundo grau, exigimos uma série de instalações monumentais, caríssimas, que vão ficar paradas dez anos e ninguém vai saber usar."
Segundo Brentano, desde que haja treinamentos e testes de incêndio com frequência, a infraestrutura necessária é muito mais simples. "É preciso sinalização, iluminação, sistemas simples de detecção e alarmes, saídas de emergência adequadas. Tudo isso tem uma manutenção muito fácil."
Isso é importante, entre outros fatores, para mudar a questão cultural da preocupação com a prevenção, diz ele.
"Se as crianças e professores sabem como proceder na escola, também vão ter uma consciência maior sobre outros lugares, sobre segurança doméstica. Isso gera um efeito multiplicador."
"Tudo o que é problema de postura cultural leva gerações para resolver - não muda de um dia para o outro. E a consciência na escola é o primeiro passo", diz.
*colaborou Amanda Rossi