"Minha liberdade é vigiada", desabafa mulher agredida em SP

Sarah tem 27 anos e ficou presa a um relacionamento conturbado entre 2011 e 2014 por medo do ex-companheiro. Ela o denunciou após ele ameaçar matar não apenas ela, como a própria família. "Dizia que chuparia nosso sangue", relata

1 abr 2015 - 14h21
(atualizado às 18h28)

A vendedora Sarah Mantovan da Silva, 27 anos, é uma mulher vaidosa. Maquiagem nos olhos, batom cor de rosa nos lábios e chapinha no cabelo, ela tem três tatuagens pelo corpo, duas delas, visíveis. É pelas tatuagens, aliás, que um pouco da história pessoal de Sarah começa a emergir: no braço direito, ela traz as iniciais do ex-companheiro contra quem move três processos judiciais; no esquerdo, quase no pulso, ela traz o Salmo 23 – o mesmo, por sinal, que pede, ao autor da prece, um guia “pelas veredas da justiça”.

Com o fim do relacionamento conturbado, ela fez outra tatuagem - a de um salmo bíblico
Com o fim do relacionamento conturbado, ela fez outra tatuagem - a de um salmo bíblico
Foto: Janaina Garcia / Terra

Os processos de Sarah são todos resultado de três anos de violência física e psicológica que ela afirma ter sofrido do ex-companheiro, o qual conheceu em 2011 e só conseguiu denunciar à polícia em agosto do ano passado – ainda assim, mais de um mês após uma tentativa de agressão com uma faca de churrasco. Das grandes.

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Depois de uma fuga para Minas Gerais e para o litoral sul de São Paulo, onde buscou proteção na casa de familiares, Sarah recorreu ao projeto “Guardiã Maria da Penha”, da Prefeitura e do Ministério Público estadual, para garantir que a distância mínima de 300 metros imposta pela Justiça a seu ex fosse cumprida. “A medida protetiva para ele era um nada”, ela conta. Como seu caso foi considerado um dos mais graves – a polícia teve acesso a 160 páginas com mensagens de texto e voz com ameaças de morte –, as visitas dos guardas civis metropolitanos são diárias. Liberdade vigiada? “Com certeza, porque eles sempre estão aqui”, conta Sarah. Que conclui: “Minha vida tem um antes de 2011 e um depois: antes, eu podia ir e voltar para onde eu quisesse; agora mudou tudo. Tenho receio até do que posso falar”, ela diz. E quando isso acontece? “Todo dia.”

Sarah começou a colocar a própria história em um livro. A ideia é incentivar outras vítimas de violência doméstica a denunciarem as agressões, e, quem sabe, entender a própria história. É como se, falando sobre o assunto – dando nome completo e cara para as imagens – ela pudesse, de alguma forma, eliminar o veneno do passado e produzir a vacina para o futuro. 

Leia, a seguir, o relato dessa paulistana da Sé, região central da capital, à reportagem do Terra.

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“Ele dizia que chuparia o sangue meu e da minha família”
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Conheci meu ex em casa, mesmo, porque ele era filho da senhora que trabalhava lá. 

Começamos a conversar, ele tinha um papo interessante – trabalhava com produção em uma grande emissora de TV, chegou a fazer montagem de cenário para um filme gringo e conhecia muita gente legal por isso. Sei lá, achei que ele fosse uma pessoa diferente por trabalhar assim. E nos dois primeiros meses de relacionamento, nesse sentido, a coisa fluiu bem – depois ele começou a mudar.

No braço, as iniciais do ex. "Ele dizia que, se eu o amasse, faria a tatuagem como prova de amor"
Foto: Janaina Garcia / Terra
Aos poucos, eu não podia mais trabalhar, estudar. Ele começou a ficar agressivo. Aos seis meses, engravidei – em parte porque eu sonhava ser mãe, mas também porque ele me cobrava: “Você é seca?”

Piorou durante a minha gravidez, eu me virava com tudo sozinha. Foi tão conturbada que minha filha nasceu antes do previsto. A gente entrou em luta corporal várias vezes, inclusive quando eu estava grávida.

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Depois que minha filha nasceu, ele começou a sair de casa com a desculpa de que compraria comida. Só voltava depois de dois dias – e voltava sujo, bêbado. Eu não tinha opção: já tinha me decidido que me separaria quando estava de dois meses [de gravidez], mas ele começou com as ameaças de morte. “Você não tem opção” era o que eu mais ouvia. “Você não tem que querer, sua alma é minha”. Era por aí.

Ele nunca deu importância para a nossa filha. E eu pedindo a separação, porque estava completamente infeliz. Fiquei com a saúde debilitada, perdi 10kg, só há pouco tempo comecei a recuperar peso. Eu não tinha mais vontade de nada.

Cheguei a me separar dele, mas ele ameaçou também a minha família e eu fiquei com medo. Dizia que ia atrás da minha mãe, perturbava minha avó, ligava no celular de todo mundo até de madrugada... Cheguei a me mudar da minha casa, no centro, para a casa dele, na periferia. Ali passei uma barra bem difícil, porque ele não me deixava trabalhar – falava que ia sair com outros homens, tinha um ciúme doentio – e sumia, sem me deixar dinheiro para a comia. Precisei comer na casa de vizinhos. Um dia, peguei a mala, pus minha filha no colo e parti.

Sarah, 27 anos, sofreu com a violência do ex-companheiro durante mais de três anos, até denunciá-lo à polícia
Foto: Janaina Garcia / Terra

Fugi para Minas, na casa de parentes, porque tinha muito medo do que poderia acontecer. Voltei depois de 20 dias. Ele voltou a me perturbar. Fui para a casa da minha mãe no Guarujá, ele continuou insistindo – tanto que invadiu a casa dela, com ameaças. Prometi que voltava com ele, mas em casas separadas, e assim foi durante seis meses. Isso em janeiro do ano passado.

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Voltei para ele para livrar minha família. Eu estava desesperada, tinha muito medo.

Em junho, descobri que, mesmo querendo que eu voltasse a morar com ele, já tinha ido morar com outra mulher. E insistia para eu aceitar a situação, porque a outra sabia. Fiquei muito mal, fui hospitalizada... foi um baque grande... Porque eu sabia que estava daquele jeito por não querer voltar, ter que voltar a me relacionar obrigada e saber que ele estava com outra. Foi um choque. E foi um fim definitivo.

Até que um dia veio em casa. Era Copa do Mundo, e tinha um amigo da família vendo jogo do Brasil com a gente. Meu pai o deixou entrar, porque ele alegou que queria ver a filha, mas, quando viu nosso amigo, partiu para cima dele com uma faca de churrasco. Acabou machucando meu pai.

Eu tinha medo de denunciá-lo – ele me dizia que, se eu “sujasse a ficha” dele, eu estava “ferrada”, mas esperei a poeira baixar e fui até a polícia em agosto. Levei comigo 160 páginas com ameaças dele feitas por e-mail e celular, e, mesmo assim, não consegui a medida protetiva. No dia seguinte a essa ida à delegacia, ele me mandou mensagens de voz dizendo que mataria a mim e a minha família e que “chuparia o sangue de todo mundo”. Na mesma hora levei isso para a polícia e consegui a medida. 

Ele foi levado para a delegacia, me ameaçou lá mesmo, fez graça para a delegada, mas não ficou preso.

Cheguei ao projeto porque, uma semana depois da protetiva, ele estava na minha porta de novo. Meu pai que foi atrás. Agora, sei que ele não chega perto porque ele tem medo de polícia, de GCM. Mas vivo uma liberdade vigiada, com certeza. A vida não é mais a mesma.

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Eu tinha uma vida maravilhosa até 2011 – eu podia ir e voltar para onde eu quisesse. Depois de conhecê-lo, tenho receio do que posso falar, tenho medo do que ele possa fazer. tenho medo, por exemplo, que possa se matar mas que venha, antes, me finalizar. Isso passa pela minha cabeça todos os dias.

Depois que isso aconteceu na minha vida, resolvi escrever um livro para ver se encorajo outras pessoas a denunciarem.  Já ouvi uma mulher dizer, por exemplo, que estava com o nariz quebrado –  e mesmo assim não tinha conseguido a protetiva.

Queria me chocar mais, mas, infelizmente, vejo que a violência doméstica ainda é muito rotineira. Espero que essa lei do feminicídio ajude a coibir os casos – especialmente os mais graves –, mas a gente sabe que a realidade ainda é muito diferente.

Um dia vou contar tudo para a minha filha, se ela quiser mesmo saber. Mas aí vou precisar dizer que, quando grávida, ele tentou me empurrar de carro para a frente de um ônibus. Não acredito que ele tenha amor por ela.

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Enquanto eu puder guardar a vida da minha pequena, farei isso.

Fonte: Terra
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