Em rua na Vila Mariana, água que corre pela rua é usada por alguns prédios para limpeza e regar plantas. Na rua Dr. Nicolau de Souza Queiroz, na Vila Mariana (zona sul de São Paulo), a água corre pela sarjeta praticamente dia e noite, segundo moradores, formando colônias de musgos sob ela no asfalto. Acreditando se tratar de um vazamento, alguns vizinhos já notificaram as autoridades, enquanto a água continua a escorrer rua abaixo.
Mas, essa água, na verdade, vem de galerias pluviais da região - e alguns prédios da rua passaram a improvisar sua coleta, colocando canos para captá-la e bombeá-la da rua.
"Nossa conta de água caiu de R$ 500 para R$ 50", diz o porteiro de um dos condomínios à BBC Brasil. "Regamos as plantas, lavamos a garagem e o salão de festas."
Outro porteiro conta que já viu até moradores de rua tomando banho na água da sarjeta. Mas, segundo especialistas, apesar de sua aparência translúcida, essa água pode não ser limpa - e traz riscos à saúde. Diante de cursos d'água como este ou mesmo para aproveitar a temporada de chuvas, muitos se perguntam como coletar e usar águas aparentemente desperdiçadas, em um momento de crise de abastecimento em São Paulo.
Herli Leite, que mora na Nicolau de Souza Queiroz, avisou a Sabesp, mas foi informada que, por não se tratar de água encanada, a responsabilidade é da prefeitura.
"Liguei na Prefeitura e disseram que não era com eles, pois cuidam somente de casos de esgoto a céu aberto e que isso era com a Sabesp, mas que, em até 40 dias, eles iriam dar uma verificada", diz Herli à BBC Brasil. "Acho que não tem muita solução e deverá ficar escorrendo pela rua mesmo, já que não é de responsabilidade de nenhum órgão público."
Risco de contaminação
A Secretaria de Infraestrutura do município informa que essas águas vêm de nascentes e das chuvas. "Em alguns casos são armazenadas nos reservatórios de contenção (piscinões), mas nesse estágio não podem ser utilizadas, porque podem estar contaminadas com materiais perigosos."
Na rua Augusta, centro da cidade, muitas pessoas viram a água que escorria no mês passado do lençol freático de um prédio em construção e aproveitaram o líquido para limpeza e uso nos vasos sanitários.
O problema é que, ao encostar no chão da rua, a água fica exposta a fezes de animais ou outros agentes contaminantes. Por isso, a prefeitura e especialistas ouvidos pela reportagem fazem advertências contra o seu uso.
"São águas que lavaram o solo ao passar", explica Edson Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil. Muitas vezes essa água vem da chuva e acaba caindo nas galerias construídas por prédios, garagens e demais edificações. Quando a água se acumula em excesso, é liberada para a rua.
"Num momento de crise, muitas pessoas têm usado essa água para fins menos nobres (de limpeza), mas é preciso ter cuidado com sua origem, e ela não deve ter contato direto (com humanos e animais)", prossegue Carlos.
"Se a água foi parar na calçada e na boca-de-lobo (bueiro), não dá para tratar. Pode ser melhor deixar ir para o rio", opina Hubert Gebara, vice-presidente de Administração Imobiliária e Condomínios do Secovi-SP (sindicato do mercado imobiliário).
Cisternas e poços artesianos
O improviso de cisternas e de caixas d'água para coletar a chuva tem sido outro método cada vez mais comum de acúmulo de água em tempos de seca. E ele também requer cuidados, explica Gebara.
Água captada da chuva precisa ser usada rapidamente para não facilitar proliferação de dengue. Primeiro, porque a chuva que cai em cidades grandes como São Paulo é ácida, devido aos poluentes presentes no ar. Por isso, não pode ser bebida e serve apenas para limpeza e rega de plantas.
O ideal, diz Gebara, é que água coletada da chuva seja transportada de telhados e calhas por uma tubulação própria e, depois, clorada e armazenada por apenas poucos dias, para que não se transforme em foco de dengue.
Em prédios, Gebara opina que a perfuração de poços artesianos é a opção mais duradoura para ganhar mais autonomia em relação ao abastecimento tradicional. Há empresas especializadas que fazem a análise do solo e, depois disso, é preciso obter uma outorga do poder público para poder perfurar e usar a água.
"Essa água tem de ser periodicamente analisada, mas pode ser jogada na caixa d'água do prédio e até bebida", afirma o representante do Secovi-SP. Dependendo do poço, ele pode até suprir as necessidades de um prédio residencial de cerca de 40 apartamentos.
O problema é que, com o aumento da demanda, a demora para perfurar esses poços subiu de um mês para até cinco, diz ele. O preço também tem subido e tende a ficar em R$ 100 mil a R$ 200 mil para um poço de boa vazão.
Curso natural
Mas o professor do Senac Renato Tagnin, especialista em gestão de recursos hídricos, refuta a ideia de que a água que está correndo nas ruas e subsolos da cidade esteja sendo desperdiçada: "Os rios são alimentados por essa água", lembra.
O problema é que cidades como São Paulo estão cada vez mais impermeáveis, ou seja, por causa do concreto a água da chuva não consegue penetrar no solo e, através dele, alimentar nossos rios. E assim nossas fontes de água vão se esgotando.
"O problema é que estamos sendo condicionados a olhar a água e pensar, 'dá aqui que eu uso'. É um olhar muito utilitarista. Temos de começar a pensar maior: parar de retirar a vegetação e passar a permitir que a água consiga infiltrar."