Igor Rocha Ramos era negro, tinha 16 anos, estava no ensino médio e vivia no Jardim São Savério, periferia da zona sul da capital. Às 13h15, ele furou o isolamento social para comprar pão de cachorro-quente e um maço de cigarro para a mãe, conta a família. Cerca de 20 minutos e um tiro na nuca depois, o jovem entrou para o contingente de pessoas mortas durante ações da Polícia Militar de São Paulo que, em abril, atingiu o maior índice para o mês desde o início da série histórica em 2001.
Segundo dados da gestão João Doria (PSDB), publicados no Diário Oficial, o número de "mortes decorrentes de intervenção policial" envolvendo a PM subiu 54,6% em abril, já com a quarentena contra o coronavírus em vigor no Estado. Foram 116 casos contabilizados, ou seja, um caso a cada seis horas. Essa classificação deve ser usada para ocorrências em que há pressuposto de legitimidade na ação dos agentes: um assalto com vítimas em risco ou quando bandidos atiram contra a guarnição, por exemplo.
O aumento das mortes oficiais pela PM foi registrado mesmo diante da redução drástica de crimes cometidos em período simultâneo, principalmente assaltos, que historicamente são usados como justificativa pelos governos. Estatísticas da Secretaria da Segurança Pública (SSP) apontam que os roubos caíram 30,3% no Estado, com o total de 14.057 registros. Já os furtos reduziram à metade. Ao todo, houve 20.797 casos, ou 53,3% a menos do que em 2019.
Para especialistas, o cenário indica, na verdade, uma escalada da violência policial em São Paulo, principalmente nas periferias. No caso de Igor, a ação aconteceu no dia 2 de abril. Segundo familiares, os PMs alegaram ter recebido um chamado sobre um suspeito armado e que o jovem saiu correndo da padaria ao avistar os agentes. Encurralado em uma viela, ele teria tentado atirar nos policiais, mas acabou baleado.
A família, entretanto, contesta a versão. "Meu filho foi atingido por trás", relata Ana Paula Oliveira Rocha, de 44 anos, que na ocasião se recuperava de covid-19, mas saiu de casa a tempo de ver o corpo do filho, já sem vida, ser posto na maca da ambulância, segundo conta. "Teve testemunha que viu tudo: ele estava só com celular e o dinheiro da padaria. Morreu segurando a bermuda que estava folgada. Eu mesma tinha dado um ponto na bermuda antes de ele sair de casa, não havia arma nenhuma."
De acordo com a mãe, Igor havia recebido ameaças de um policial dois meses antes de morrer por ser ex-interno da Fundação Casa. Ele fora detido em 2019, ao tentar roubar um carro junto com três amigos, e passou seis meses na unidade no Jabaquara, também na zona sul da capital, de onde saiu em dezembro.
Em nota, a SSP afirma que os fatos ainda são investigados pela Polícia Civil e pela própria PM, em inquérito sob sigilo. "Meu filho errou, pagou pelo que fez e não estava mais errando. Estava feliz porque começou a fazer curso, ia trabalhar em seis meses, aí vem uma pessoa e tira a vida dele?", diz a mãe. "Minha vida acabou. Se fosse filho de rico, o policial estaria preso. Como a gente é da periferia, ficam enrolando, achando que vamos cansar. Eu não vou cansar até receber Justiça."
Violência
O caso de Igor é uma das 12 denúncias de suspeita de execução reunidas pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, organização civil que acompanha episódios de violência policial e dá suporte a vítimas e familiares. Em abril, o grupo lançou campanha para colher denúncias após constatar crescimento de relatos durante a quarentena em São Paulo.
"Como as ruas estão mais vazias, a sensação é que a sociedade já não está lá para olhar e os policiais podem fazer tudo", afirma a psicóloga Marisa Feffermann, pesquisadora do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e uma das articuladoras da Rede. "Várias denúncias são de jovens que estão apanhando sem razão, recebem socos no rosto, têm o nariz quebrado. A morte é a última etapa da escalada."
Segundo Marisa, os casos acompanhados pela Rede demonstram que há um padrão para as vítimas: a maior parte de jovem de 15 a 24 anos, homem, negro e morador de "territórios mais vulnerabilizados". "Entre agentes do Estado, que em princípio deveriam proteger a todos, percebemos que há um imaginário de que as leis podem ser feitas com as próprias mãos. Isso segue uma lógica que existem 'pessoas matáveis'."
O perfil das vítimas bate com os dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, segundo os quais 75,4% das pessoas mortas durante intervenções policiais no Brasil, entre 2017 e 2018, eram negras. Na outra ponta, os negros representam 51,7% dos policiais assassinados, embora sejam só 34% do efetivo nacional.
Diretora-executiva do Fórum, Samira Bueno avalia que a letalidade da PM em abril foi "assombrosa". "Quando há aumento, em geral, o argumento da polícia é que houve mais crimes contra o patrimônio ou que diminuiu o tempo de resposta (o quanto a polícia demora para chegar ao local)", afirma. "Não há nenhuma justificativa, do ponto de vista das tendências de criminalidade, que poderia explicar o resultado deste mês."
Para a especialista, a guinada do número de mortes pode ser reflexo de dois fatores: a ausência de mecanismos de controle e o incentivo à postura de confronto da PM como política de segurança pública. "A falta de controle interno e externo faz com que policiais se sintam muito livres para fazer uso da força. Há margem para desvio", diz. "Entre as ocorrências, você vai encontrar desde o policial que não teve outra alternativa, e agiu de forma legal, até os casos de execuções perpetradas pelo polícia. Tudo acaba caindo na vala comum."
Vidas negras importam
Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd, homem negro de 46 anos asfixiado por um policial branco, deu início a uma onda de protestos que se espalhou pelo mundo e também chegou ao Brasil. Nas rede sociais, o movimento foi impulsionado pela hashtag #VidaNegrasImportam.
Bandeiras antirracista e de combate à violência policial estiveram presentes em atos contra o presidente Jair Bolsonaro, realizados em aos menos 11 Estados e no Distrito Federal, no fim de semana passado. Em São Paulo, a manifestação terminou com a PM usando balas de borracha e bomba de gás lacrimogêneo para a dispersão - ação posteriormente aprovada pelo governador João Doria para, nas palavras dele, separar "vândalos de manifestantes".
Professor da FGV EAESP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani analisa que a violência da polícia pode se tornar uma questão politicamente sensível para Doria. "O governador fez uma campanha calcada no endurecimento da ação policial e, agora, está com um problema gigantesco nas mãos porque o mundo mudou, como fica claro com a morte de Floyd nos EUA. Ele mesmo já percebeu que o pêndulo pró-bolsonarismo - de tiro, porrada e bomba - está mudando no Brasil", diz.
"Até aqui, a política de segurança pública de Doria foi de confronto, tanto é que ele privilegiou a construção de Baeps, batalhões que têm essa cultura", avalia Alcadipani. "Mas em momento algum do governo, adotou uma medida mais séria de combate à violência e, principalmente, de combate à letalidade policial, que é um escândalo em São Paulo. O número de pessoas mortas, especialmente neste mês de abril, é inaceitável em qualquer democracia do mundo."
Outro lado
Em nota, a SSP afirma que "tem intensificado as ações de combate a crimes de racismo, intolerância e contra a população LGBT". "Além disso, durante a formação, todo o policial, civil e militar, cursa a disciplina de Direitos Humanos, na qual o tema está inserido, inclusive com discussões sobre abordagem e atendimento às vítimas", informa.
O comunicado afirma, ainda, que o governo "trabalha para reduzir os casos de morte decorrente de intervenção policial". Segundo a secretaria, todas as ocorrências do tipo são investigadas pela Polícia Civil, seja por delegacias de área ou pelo Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), e por inquéritos militares instaurados pelo próprio batalhão envolvido na ocorrência. Também há casos apurados pela Corregedoria da PM.
Entre as medidas de controle de letalidade, a secretaria cita a Resolução SSP 40/2015, editada na época do governo Geraldo Alckmin (PSDB). A norma determina o comparecimento das Corregedorias e dos comandantes regionais no local da morte, além de equipes específicas de peritos policiais.
Morte de George Floyd aumenta mobilização
Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd, homem negro de 46 anos asfixiado por um policial branco, deu início a uma onda de protestos que se espalhou pelo mundo e também chegou ao Brasil. Nas rede sociais, o movimento foi impulsionado pela hashtag #VidaNegrasImportam.
Bandeiras antirracista e de combate à violência policial estiveram presentes em atos contra o presidente Jair Bolsonaro, realizados em aos menos 11 Estados e no Distrito Federal, no fim de semana passado. Em São Paulo, a manifestação terminou com a PM usando balas de borracha e bomba de gás lacrimogêneo para a dispersão - ação posteriormente aprovada pelo governador João Doria para, nas palavras dele, separar "vândalos de manifestantes".
Professor da Fundação Getulio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani analisa que a violência da polícia pode se tornar uma questão politicamente sensível para a gestão Doria. "O governador fez uma campanha calcada no endurecimento da ação policial e, agora, está com um problema gigantesco nas mãos porque o mundo mudou, como fica claro com a morte de Floyd nos EUA. Ele mesmo já percebeu que o pêndulo pró-bolsonarismo - de tiro, porrada e bomba - está mudando no Brasil", diz.
"Até aqui, a política de segurança pública de Doria foi de confronto, tanto é que ele privilegiou a construção de Baeps, batalhões que têm essa cultura", avalia Alcadipani. O Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep) são grupos "estilo Rota" prometidos pelo governador para endurecer o combate ao crime.
"Mas em momento algum o governo adotou uma medida mais séria de combate à violência e, principalmente, de combate à letalidade policial, que é um escândalo no Estado de São Paulo. O número de pessoas mortas, especialmente neste mês de abril, é inaceitável em qualquer democracia do mundo."
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública do Estado afirma que "tem intensificado as ações de combate a crimes de racismo, intolerância e contra a população LGBT". "Além disso, durante a formação, todo o policial, civil e militar, cursa a disciplina de Direitos Humanos, na qual o tema está inserido, inclusive com discussões sobre abordagem e atendimento às vítimas", informa a pasta.
O comunicado informa, ainda, que o governo paulista "trabalha para reduzir os casos de morte decorrente de intervenção policial". Segundo a secretaria, todas as ocorrências do tipo são investigadas pela Polícia Civil, seja por delegacias de área ou pelo Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), e por inquéritos militares instaurados pelo próprio batalhão envolvido na ocorrência. Também há casos apurados pela Corregedoria da Polícia Militar.
Entre as medidas de controle de letalidade policial listadas, a secretaria paulista cita a Resolução SSP 40/2015, editada na época do governo Geraldo Alckmin (PSDB). A norma determina, entre outros pontos, o comparecimento das Corregedorias e dos comandantes regionais no local da morte, além de equipes específicas de peritos policiais para apuração dos casos.